segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Lentilhas, fitas coloridas e um punhado de sal grosso


Na cozinha, as lentilhas estão de molho, esperando a hora de recomeçar. As fitas coloridas no bolso são como arco-íris de pano que só existem no paradoxo entre sol e chuva: sinônimos de sorte. O sal grosso é para temperar os dias, espantar os maus e derreter o que há de ruim. É isto: hoje é dia de simpatia para todos os gostos. Até quem não acredita faz as suas preces, num cantinho entre um santo e outro.

Meia noite de um ano inteiro. Hoje, porque é começo, todo mundo, no mundo todo, acredita mais, sonha mais, deseja mais o bem... seu próprio e dos outros. Começo é assim: dá um frio na barriga por desconhecer – a agonia típica de uma página em branco, entendem? – mas dá, sobretudo, aquela vontade gigantesca de acertar, de fazer direito o que se propôs a fazer, de não repetir os murros nas pontas de facas afiadas e de fortalecer o pontapé pros voos mais altos. 

Ano inteiro que começa à meia noite. As gentes todas estão na janela, como na música do Chico. Mas, dessa vez, não esperam a banda passar. Neste caso, o que passa é o tempo. Durante os meses, ficamos todos assistindo ao danado do tempo voar, mas no “ano-novo” ele corre barulhento, lembrando, aos gritos, entre um foguete e outro, que é preciso recomeçar, é preciso agir, é preciso ter fé, ousar, estar perto, falar que gostamos... enquanto há tempo. E sempre há.

De uma noite para outra, um número muda no calendário e a gente toda muda com ele. Parece que, de repente, todos ganhamos super poderes e nos tornamos capazes de sermos o melhor dos melhores no melhor dos mundos. É a tal da esperança que resolve sair dos muros pichados, das orações das mães, das universidades, da cabeça dos idealistas, dos quadrinhos, das propagandas de coca-cola, dos cartões de natal, dos romances na TV, das cabines de votação e (ufa!) de onde mais existam utopias... pra pousar, como um balão, em todas as casas, de todas as cidades, entre todas as cercas elétricas ou paredes de papelão. É assim mesmo, de perder o fôlego.

O Guimarães já dizia: o que a vida quer da gente é coragem. Coragem de assumir que não é só no reveillon que a esperança está em nós. Ela fica ali, todos os dias, numa lentilha perdida debaixo do tapete da cozinha, esperando a gente atinar que o tempo corre pra atacar o mundo e colorir as ideias.

Ah, vai, o que é que custa acreditar o ano todo?

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Meu velho!


Ler mais jornais impressos. Tomar sol. Terminar a biografia do Hitchcock. Diminuir os toddynhos e aumentar os sucos de laranja. Ir mais para a roça. Ler mais jornais impressos. Postar no blog. Tocar mais violão. Conversar menos nas aulas. Ouvir mais música clássica. Fazer mais amigos. Passar menos sábados em casa. Assistir a mais filmes. Dirigir. Falar menos. Trabalhar o suficiente. Atualizar o currículo. Ler mais jornais impressos. Não reclamar. Não se importar. Se importar demais. Sorrir largo. Dar presentes. Adotar um cachorro. Conhecer outro país. Morar fora. Tirar mais fotos. Ficar menos no computador. Ouvir mais bolachão. Fazer o bem. Rezar mais. Escrever poesias. Olhar para o lado. Cozinhar mais. Brincar. Nadar. Ler mais jornais impressos. Ter mais paciência. Conversar com os pais. Terminar de escrever um livro. Começar a escrever um livro. Sair no carnaval. Beber menos. Beber mais. Conhecer mais praças. Mudar o cabelo. Não fazer outra tatuagem. Ter paciência. Cobrar menos. Ligar pra dinheiro. Ter mais humildade. Ler mais jornais impressos. Bagunçar. Acreditar na política. Desconfiar dos políticos. Andar mais descalço. Julgar menos. Fazer mais amigos. Ter menos saudade. Ter o que lembrar. Formar. Arrumar outro emprego. Não mudar de profissão. Ler mais jornais impressos. Ser feliz. Fazer feliz. Tentar.

Ano novo, meu velho!

Como prometido, segue o vigésimo segundo CTRL C + CTRL V, cheio de carinho repetido! 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Clichê?

Quantas vezes, só nesta semana, você ouviu a expressão “clichê”?  A cultura de produção em série – de produtos, de ideias, de pessoas – trouxe de brinde essa agonia maluca de tentar fugir do óbvio, ser diferente, mostrar o que ninguém viu...

Mas dezembro é um mês clichê. Ô, mesinho danado de clichê que é o tal do dezembro. Todo mundo fica meio bonzinho, meio feliz. As refeições são as mesmas, assim como as simpatias e cores de roupa. As casas ficam pintadas do mesmo jeito, com os mesmos enfeites, a mesma árvore cheia de luzes indecisas e o mesmo barbudão iludindo as crianças. As ruas ficam repletas de gente com as mesmas intenções e as mãos cheias das mesmas sacolas. Tão repetitivo quanto este parágrafo mal feito. 

E aquele brilho nos olhos que o povo traz? Clichês.

Em todo – ou quase todo – lugar, a vontade de estar com os nossos, de desejar coisas boas, de fazer o bem.  É isso, fazer o bem é um troço clichê. Desejar mudar tudo e ser alguém melhor? Mais que clichê. Comemorar, feito bobocas, a conclusão de 365 dias que, um ano atrás, eram só planos é óbvio demais.

Em dezembro, acontecem aquele monte de campanhas de solidariedade, as trocas de cartas e cartões coloridos. Começam as dietas, as promessas, os perdões, os romances. Uma lista interminável de clichês baratos comprados a prestação.

Dezembro é um mês clichê. Até quem foge do clichê, nesta época, é clichê. Aquelas toucas vermelhas, os sorrisos descansados, a preocupação em acertar o presente e a curiosidade em desembrulhar o papel. De repente, ficamos todos um tanto quanto infantis. E tem ‘coisa’ mais clichê que criança? Estão sempre com aquelas carinhas de consciência tranquila. Clichês!

Dezembro é clichê. Fim do ano é clichê. Fim do mundo é clichê. Não ser clichê é clichê. Texto sobre clichês é clichê.

Ser, pensar e agir diferente é importante e sufocantemente necessário. No entanto, dar ao luxo de seguir a maré, ainda que escondidinho, só neste mês, é o que há de melhor.

Se ser feliz é óbvio demais, clichês, muito prazer, aí vamos nós!  

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Profissão: repórter?

Uma pauta infeliz, sob vários aspectos. Um programa ruim que traduz qualquer coisa menos a profissão que lhe dá o título. Uma indignação curtida, fermentada e instantânea – tipicamente jovem. Generalizações, como sempre, ignorantes e superficiais que se sobrepõem e se inserem em quem está dentro e fora da TV.

As pessoas que nos apontam os dedos são as mesmas que, quando entramos na Universidade, nos presenteiam com um discurso saudoso do próprio tempo de loucura e de excessos perdoáveis, mas que, de repente, vestiram a máscara do bom-mocismo e passaram a condenar todo e qualquer tipo de ‘auê’.

Não menos controversos, os que se indignam por terem sido enquadrados como estudantes que abusam do álcool são os mesmos que, há pouco tempo, comemoraram uma pesquisa segundo a qual fazem parte da Universidade onde mais se aprende a beber. Por que essa cara de espanto? Comemoraram, compartilharam, ufanizaram, sim, senhores. Não adianta negar.

A Universidade, tal como ela é, não é vista pela TV. Quando raro, aparece em um jornal ou em uma página do facebook. A Universidade, tal como ela é, está presente na vida dos jovens que fizeram uma escolha e tiveram sorte. Melhor época da vida – há boatos –, lugar onde somos apresentados à gente mesma, momento em que descobrimos o mundo e o olhar sobre esse universo maluco, estranho e assustador: são diversas as definições...

Vamos nos indignar por termos sido caracterizados como irresponsáveis? Vamos. Mas que tal nos sentirmos incomodados também pela apropriação cruel da vida das mulheres que foram tão ou mais personagens de uma “reportagem” que nós?

Vamos ficar roxos de raiva por nossos pais estarem aterrorizados por verem na TV um espaço universitário que não traduz o nosso? Vamos. Mas e se pensássemos nos pais dos jovens que interromperam, no meio do caminho, a trajetória que escolheram, por sermos condizentes e, por vezes, nos vangloriarmos dos nossos excessos?

Tudo é muito além e qualquer simplismo é um vício. O que está (ou não está) em pauta são vidas de pessoas, indignações tardias –  ainda que válidas –  controvérsias sérias e um mau uso do que chamam de jornalismo.

De tudo, o que fica é uma vontade de fazer diferente, pra não ser igual.

A minha profissão é repórter. A deles, já não sei.



  

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Desconfio


Quando o assunto é política, há o senso (não consenso) de que tomar partido, escolher um nome e defendê-lo é se vender, é ser menos digno de se olhar no espelho, é abrir mão de questionar e pensar de forma crítica. 

Engano. Qualquer escolha – quando pensada – é fruto de análise, de reflexão. Escolher um nome, pregar um adesivo na mochila e colocar-se a serviço de uma causa é muito mais corajoso que o comodismo ignorante e pessimista do eterno em cima do muro, da rebeldia pouco inteligente de negar tudo quanto há – de bom e de ruim.


Escolher é se mostrar, é dar a cara a tapa, é defender uma utopia (ou uma vontade, que seja). Há, de fato, os que escolhem por interesses mesquinhos, individuais, hipócritas. Mas há, sobretudo, os que escolhem porque acreditam, porque esperam, porque querem fazer parte da construção de uma história melhor. Há os que escolhem porque sonham.
Ingênuos?

Inocentes ou não, são eles – nós – que saímos de casa, que mudamos o dia, que temos a coragem necessária de levantar da cama e trabalhar por uma causa.
A ingenuidade está em quem acredita que se abster não é tomar partido e que toda ousadia depende do outro, alheio a cada um de nós.


segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Azar em desabafo

Exatos dois anos atrás. O título de eleitor contava os dados: 20 anos, duas décadas de vida. O brasileiro, no olhar, informava, explícito: oito anos – imaturos e distantes – de passarinhos no governo do retrocesso prático intelectualizado e de sapatos limpos. Pela primeira vez, exercia o direito de voto para presidente: perigoso, sério, necessário. Apertar o botão e ouvir o “trim” que ajudasse a en-direitar o Brasil era impensável, inviável, justamente negável.

O que eu queria? Queria, sim, que continuassem as bolsas assistencialistas, que todas as medidas econômicas, de investimento no meu próprio país, seguissem sóbrias, queria o de todo sempre-amém: impostos bem gastos, escândalos – já que historicamente resistentes – investigados, educação – sim, ela – emprego e o mínimo que se pensa quando se imagina uma nação (com todo o significado simbólico que o termo traz de brinde). Mas, mais que isso, embalada, ainda, pela imaturidade que a idade trazia em si, quis acreditar em líderes, me ver representada, não sentir ódio (não consigo pensar numa palavra mais branda) ao assistir, pela TV, a uma declaração presidencial – qualquer que fosse o motivo. Queria, sobretudo, acreditar. E acreditei.

O rosto não era barbudo, como de praxe, o discurso, um tanto quanto teatral – pelo que percebeu a minha percepção leiga – uma história complexa, mas forte. Escolhi. Levantei uma bandeira. Colei adesivo na parede do meu quarto. Assisti aos debates. Votei. Não uma, mas quantas vezes fossem necessárias.

Exatos dois anos depois. O título de eleitor conta os dados: 22 anos, dois deles em uma Universidade Federal tentando aprender a ser crítica, estudando grandes e corajosos nomes, buscando, nos quadrinhos, uma representação de um Brasil dos miúdos, feito pelos grandes. Situação? Greve. Não, não ajudei a endireitar o Brasil (agora sem o hífen, percebem?).  

Mas, de repente, o número 13 voltou a dar azar e parece que todo dia, no Brasil grevista, é uma sexta-feira.

Queria ser uma tartaruga...


A gente passa nove meses num lugar quentinho, protegidos de tudo quanto há de ruim neste mundão e, de repente, é hora de sair, de conhecer pessoas, lugares, ideias. Como um susto, chega a hora de abrir os olhos e andar com os próprios pés. Com um tapa de um desconhecido vestido de branco. Desconhecido.

Com sorte, passamos mais alguns anos sob o olhar atento dos nossos, sempre ali pertinho para ensinar uma palavra nova, para nos apresentar às regras – às vezes tão doloridas – do convívio social ao qual seremos submetidos mais cedo ou mais cedo.  No pesadelo infantil, podemos sair do quarto, pé ante pé, e correr pro colo de mãe, no quarto ao lado. Se, na escola, alguma coisa tira nosso sorriso costumeiro, chegamos em casa de bochechas vermelhas e olhos chorosos e apelamos para os nossos anjos da guarda: pai, mãe, irmão, cachorro e o travesseiro, tão amigo. E, como num passe de mágica, tudo volta a ser bom como antes.

Crescemos. E, sem perguntar se é isso que queríamos, não podemos mais fugir para o quarto de mãe, temos que resolver, sozinhos, o que nos acontecer de ruim quando colocamos o pé para fora de casa e começamos mais um dia. Adultos. Livres. Sozinhos.

Alguns saem de casa bem cedo e seguem seus caminhos, escolhem o que é de direito e direito, escolhem um curso, uma cidade e vão. Outros, mais sortudos – ou não – têm mais tempo aninhados: permissão pra sair e hora pra chegar, almoço no fogão e roupa limpa no armário, café preto na volta pra casa e um abraço sincero de quem quer mesmo saber como foi o dia, a certeza de que há alguém à espera com um conselho certeiro: nem que seja um “leva uma blusa que vai esfriar” e sempre esfria.

Mas até para esses – nós – há o tempo de ficar e o tempo de sair: implacável. Tarde ou não, aquele medo de andar sozinho, de só ouvir vozes, sem ver o rosto, de não ter abraço de mãe e sorriso na porta de pai todos os dias, como um presente, sempre chega.

E é por tudo isso que eu queria ser como uma tartaruga que pode ir pra qualquer canto levando sua casa nas costas... com os seus sempre por perto. Mas tartarugas andam devagar, não sonham alto. Impossível, pra quem quer voar. 



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Não muito novo, não muito velho...

- “Toma, doutora, coloca no som que às vezes funciona”, disse o senhor, não muito novo, não muito velho, limpando o CD na roupa suja.

- “Toma, doutora, às vezes funciona”.

Noite fria, dessas que fazem as pessoas desistirem de sair de casa. No alto da ladeira, entre as montanhas todas e gerais, aquela neblina baixa, paradoxalmente clara numa madrugada tão escura. Cansaço de um dia inteiro, de um mundo nas costas, de um trabalho bem feito e diversão merecida. Cansaço.

Uma voz embriagada de álcool e vida aparece entre passos confusos, se equilibrando sobre o meio fio como na música do João Bosco. Um homem e as suas roupas sujas, suas mãos sujas, seu rosto sujo começa a contar a sua história. Trabalhou ali e não trabalha mais. Tem fome. Mora longe e não sabe como chegar. Não tem dinheiro nem para ir a pé. Embriagado. A narrativa é boa, meio Almodovar, meio Hitchcock. Se a história não é alegre, as músicas cantaroladas entre as frases dão graça à conversa unilateral.

- “Acho que meu ônibus não passa aqui, não.” E se põe a olhar para o lado, esperando o ônibus que não virá: acostumado.

- “Dá uma ajuda aí? Um passe? Uma moeda?”. Coisa dessas que fazem a bochecha da gente se avermelhar de vergonha por não saber o que dizer ou fazer. Neblina de Ouro Preto. Moeda na mochila e um aperto de mão.

- “Pro senhor ir embora, heim? Juizo.” E Deus, os céus e o que mais existe entram no assunto, incumbidos de retribuir em dobro o mínimo que se fez.

- “Óh, não queria falar, não. Mas eu sou da polícia e vim prender vocês. É, sim. Eu sou da polícia militar, da pátria amada”. Para comprovar o cargo imaginário, o homem – com as moedas guardadas no bolso – começa a cantar o hino nacional, em pose de gala, mão no peito, a olhar para o céu. Continência. Rio. Rimos.

- “Vim prender vocês, sim. Mas vou embora porque meu ônibus não passa aqui. Tenho que descer longe. Sou da Polícia.”

Outro aperto de mão, uma ou duas cantarolas, uma frase engraçada e um pé-sobre-pé infindável, sem equilíbrio. Lento, o homem-pátria se distancia, olhando para trás em todo trocar de passos bem sucedidos. Acenos de mãos como se fôssemos velhos amigos.

Já longe, ele para e olha fixamente para o chão, se abaixa, recolhe algo caído. E, se esquecendo do tanto que havia para caminhar, faz o caminho de volta. Chega perto, meio tímido, meio polícia-militar, e estende a mão:

- “Toma, doutora, coloca no som que às vezes funciona”, disse o senhor, não muito novo, não muito velho, limpando o CD na roupa suja.

- “Toma, doutora, às vezes funciona”.

Presente aceito, o homem se vira em direção à ladeira, satisfeito por ter retribuído a ajuda que recebeu. “Às vezes funciona...”, vai repetindo.

E, assim, entendemos que o senhor – não muito novo, não muito velho – veio mesmo nos prender, não como polícia, como nos disse, mas como gente dessas que dá o mínimo que tem.

Terminamos a noite. Cativos.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Reclames


Cigarros. Álcool. Remédios. Seriados. Coca-cola. Chocolate. Drogas. Redes Sociais.
 Há tantos vícios quanto se possa pensar. Aparecem na mídia, assombram as mentes inquietas das mães, apavoram jovens, distraem o pensamento de quem teima em não perder o foco. No entanto, entre todos os vícios - sérios ou não, existe um que nem todos conhecem, ou que não fazem ideia de que é, sim, um vício: reclamar.   
Começa-se reclamando de um problema enorme e, de repente, qualquer pedra no sapato é motivo para cortar os pulsos verbalmente. Um almoço ruim, uma hora extra no trabalho, uma calça que não serve mais, um fora bem dado e mal recebido, uma fila maior que o comum, a internet lenta: tudo é desculpa para queixar-se da sorte. Pronto! Está ativo o viciado reclamão.
Se o relógio não desperta na hora certa, que azar! Se desperta, como é triste ter que acordar cedo!
Se há muito trabalho, que sorte errada não ter tempo para o descanso. Se o trabalho é pouco, por que não surgem mais oportunidades?
Se o telefone toca, por que é que não o deixam em paz? Se não toca, a solidão é o que veio de brinde.
O vício de reclamar é cumulativo. Quanto mais se reclama, mais motivos aparecem para reclamar. Torna-se cego a qualquer espécie de otimismo, perde-se a graça em achar graça no que deu errado. É impossível perceber o que os dias trazem de bom.
Assim como o fumante, existe também o reclamão passivo: mãe, pai, melhor amigo, status de facebook, tweet pessimista. Como um vírus, o vício de reclamar espalha-se rapidamente. De repente, quem estava rindo por ter perdido o ônibus em plena segunda-feira de manhã (sim, existem essas pessoas), passa a culpar o destino, a lei de Murphy, os céus.
Olá. Meu nome é fulano, estou há três semanas sem reclamar...
Que comecem as campanhas com imagens tristes atrás dos potinhos onde vendem pessimismo, já!

terça-feira, 29 de maio de 2012

Quebraram o pirulito da Praça


 Quebraram o pirulito da praça. Acordem suas esposas, despertem suas crianças, peguem suas armas, seus terços, seus santos e corram: quebraram o pirulito da praça!

A cidade toda acordou perplexa: até quem passava, todos os dias, por onde jaz o monumento e nem sequer percebia a beleza da vista se enfureceu. Uma cidade sem praça completa? A-b-s-u-r-d-o.

Todos – moradores, visitantes, jornaleiros, estudantes – tomaram as dores do concreto e, secos como a vítima, apontaram seus dedos, encontraram culpados, choraram, em luto.

Foguetes no céu, chamada no rádio e carro de som: qualquer ser humano preocupado, ciente, engajado que estivesse sofrendo pela morte do pirulito deveria sair de casa: levariam panelas, apitos, tambores, faixas e gritariam a revolta sincera que sentiam.

E, assim, antes do dia nascer, os sensíveis revoltados foram para a praça expulsar seus demônios.

Em um canto, ao lado da igreja, dormiam um cachorro, um velho e um menino. Enrolados em seus papelões, em frente à casa de Deus, eles acordaram assustados. Sentiram a revolta das pessoas que enchiam a praça, e, solidários, assistiram a tudo. “É mesmo um absurdo o que fizeram com o monumento: histórico, importante, notável”.

Os revoltosos revoltados ficaram horas ali, manifestando. Numa ciranda de pedra em volta do túmulo do pirulito, cantavam canções. Alguns choravam, inconsoláveis. Indignados com tamanha injustiça e desamor.

Como todas as indignações urgentes, a festa acabou. As pessoas foram para as suas casas, retomaram suas vidas, saciados pela cidadania exercida: bondosos.

O padre abriu a igreja, as beatas rezaram seus terços. O vigia expulsou o cachorro, o menino e o velho, escondendo a cidade baixa por debaixo do tapete de pés de moleque.

À noite, a praça vazia do monumento dói a lembrança. A presença do cachorro, do velho e do menino passa despercebida - carne e osso, pedra, não.

Amanheceu a cidade com suas trapaças, seus ouros falsos, suas esquinas de cachorros, velhos e meninos, feita pela história e suas prioridades – materiais.




quinta-feira, 24 de maio de 2012

A mulher da feira


Foto: Jamylle Mol
Balaio na cabeça: couve, alface, cebolinha e salsa. No mês de jabuticaba, jabuticaba. Mês de manga, manga. Os outros, limão. Todos os dias, 5h, ela já está nas ruas, passa pelas mulheres que caminham ou andam de bicicleta, com seus fones e músicas, por entre os trabalhadores que esperam seus ônibus, pelos carros de vidro fechado – invisível.

Lenço na cabeça, as mãos enrugadas seguram um peso gigantesco, o mundo nas costas. Ela expulsa um cachorro que dorme encolhido para esconder do frio, na esquina entre a rua e a praça. O sol ainda nem nasceu e a feira está pronta: ela espanta um cochilo e pensa nas crianças que ficaram em casa dormindo.

- Tá fresquinho?
- Pode levar...
- Dá um desconto?
- Pode levar...

Meio dia, a barriga ronca. Se tirar uma banana ou roubar uma manga, pode faltar pro freguês de mais tarde. Bebe mais água, seca as mãos na saia comprida de chitão, enxuga a testa e olha pra cima, por piedade ou esperança.

Fim do dia, moedas no saquinho de pano. Uma a uma, garantem o jantar. Hoje, a venda foi boa, pode ter salsicha no macarrão. Meninada alegre, dia de festa! Balaio vazio, o cachorro já está esperando que ela libere o lugar. Cabeça baixa, numa humildade servil, ela passa por entre as pessoas. No caminho, um papelão pra forrar a feira do dia seguinte. Hoje foi mesmo um dia de sorte!

Exausta, ela sobe o morro, observando cada pedra da rua, sem ver o céu. Chega em casa, rádio e ave Maria, macarrão, abraço e beijo na testa de cada um dos seus. Limpa o chão, molha a horta, reza o terço. Café quente e cama. Amanhã tem mais.

Dona, senhora, coitada, mãe, feirante. Sem nome, a mulher da feira. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Dia de cor



Foto: Jamylle Mol

Preto e Branco é bom em filme antigo, foto do Sebastião Salgado ou coisa assim. Cor, não. Cor é coisa boa. Coisa que faz criança rir e faz adulto virar criança. Cor tem cheiro de domingo na praça, de abraço de mãe, de alegria de acalmar as ideias e as pressas urgentes. Arco íris, algodão doce, carnaval: tudo bem, bem bom. Hoje, 17 de maio, é dia de cor.

Mas há gente que teima em não gostar de gente. Gente que insiste em não respeitar gente. Gente, gente, gente...

Importa mais o que a gente (as gentes?) faz pelo mundo e pelos outros ou a nossa opção sexual?

Incomoda mais ver um casal de mulheres ou uma criança abandonada na rua?
A indignação pelas injustiças todas (e muitas) não ocupa todo o espaço? Ainda assim, há tempo para se indignar com o que é natural? Com o que só faz bem?

Hoje é dia de sair por aí colorindo a cabeça de quem ignora: ignora que o errado é ser contra o amor, o amor dos outros e o nosso. De quem desconhece tanto que crê numa verdade torta, egoísta, cruel. De quem desperdiça o dom que é aceitar o diferente de si.

Hoje é dia de lutar pelo que deveria ser (e é) direito de todos: ser a gente mesmo. E, assim, ser gente. 

Hoje é dia de combate à homofobia.

Colori-vos! 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Se o palhaço de rua tivesse um telhado


Se o palhaço de rua tivesse um telhado – desses feitos com telhas e forros de madeira ou concreto, o sol forte dos dias quentes não queimaria o rosto do artista. Nenhum palhaço teria aquelas bochechas rosadas, queimadinhas de sol. 


Se o palhaço de rua tivesse um telhado, o vento não derrubaria os acessórios do cenário e, assim, não seria preciso improvisar nenhuma piada! Nenhum garotinho admirado sentiria o coração disparar ao ver o palhaço vir até pertinho dele para buscar o chapéu que caiu no chão, desobedecendo a marca que separa o público do artista.

Se o palhaço de rua tivesse um telhado, as estrelas que compõem a cena ficariam de fora do espetáculo, curiosas, lá de cima, no céu, imaginando o que se passa... A lua, que, os mais atentos percebem: fica mais assanhada em dia de palhaçaria na praça, não assistiria a nada.  Mudaria o calendário e minguaria, assim, só de birra.

Se o palhaço de rua tivesse um telhado, as risadas das crianças; daquele velhinho que, mesmo não escutando muito o que o palhaço diz, dá gargalhadas como se fosse moço; da menina mal humorada que esquece as tristezas e se abre pra alegria; do gordinho que ri segurando a barriga e de todos que se concentram no espetáculo ficariam abafadas. Presas entre quatro paredes, restritas, debaixo do telhado. Até o latido do cachorro de rua, que se assusta com o barulho da corneta, ficaria ali, estático.

Se o palhaço de rua tivesse um telhado, a chuva nunca atrapalharia o espetáculo. O figurino ficaria sempre seco, a maquiagem bem feita, os cabelos desordenadamente em ordem. Não existiria aquela tensão que faz o artista olhar por entre o cenário para ver se as pessoas ainda estão lá, mesmo com o barulho de trovões.

Se o palhaço de rua tivesse um telhado, não seria palhaço de rua. Seria outra coisa. Palhaço de rua, não. Palhaçada na praça tem direito a bochecha queimada de sol – tanto da plateia quanto do artista. Tem participação da lua, das estrelas e até das nuvens que, ora aparecem, ora saem de cena. Espetáculo na rua espalha, na cidade, as risadas todas que resolvem se libertar dos seus donos. No dia seguinte, o trabalhador que passa pela rua onde teve palhaçada, ainda sente um eco bom de gente feliz.

Nariz vermelho, sapato comprido, rosto pintado, peruca colorida. Violão de madeira – sem corda, com som. Corneta, tambor, balão. Apito, algodão-doce, bolinhas de todas aas cores. Saco de farinha, copo de vidro, calça larga – meio xadrez, meio estampada. Cueca de coração por baixo da bermuda. Com tanta coisa linda dentro do baú, por que é que o palhaço de rua precisa de telhado?

terça-feira, 1 de maio de 2012

Como é que se diz malabarismo?


Por definição geral, malabarismo é uma das atrações pioneiras do circo tradicional. É a capacidade de manter, no ar, argolas, bolinhas, claves, copos e o que mais a criatividade do artista permitir.  Malabarismo, em essência, é a arte de manipular objetos com destreza. É a habilidade que permite a alguém fazer tanta graça com as coisas a ponto de confundir os olhos do público, que fica sempre atento à dança colorida que os objetos formam no céu.

Para assistir aos malabarismos da dupla “Duo Morales”, as pessoas encheram a Praça Gomes Freire, e, como uma prévia do que viria, se equilibraram também, umas entre as outras, para enxergar o melhor ângulo do espetáculo. Sentados em um dos banquinhos da praça, com direito a uma visão panorâmica do que estava por vir, dois garotinhos –  um deles, com o nariz pintado de vermelho –  reparavam a montagem do cenário, balançando os pés, numa ansiedade dessas urgentes que se tem quando criança de uns quatro ou cinco anos:

– Eu gosto mesmo é daquele negócio ali, sabe? 

– Que negócio?

– Aquele ‘trem’ ali no chão, laranja e amarelo...

– Ah! A sanfona?

– Nããão! Aqueles troços pequenos que parecem uma roda...

– As argolas?

– Chama “argola”?

– Chama, né! É de fazer mabalarismo! 

– Fazer o que?

– MA-BA-LA-RIS-MO! É o que os palhaços vão fazer hoje, não sabia? 

– Não! O quê que é mabalarismo?

– É assim, oh: o palhaço sai pegando as coisas no chão e joga pro alto! Depois, ele pega tudo de volta, sem deixar cair nadinha! Eu sei fazer também.

– VOCÊ SABE FAZER MABALARISMO?

– Sei. 

– Então, me mostra! 

“Contagem regressiva! Mil, Novecentos e noventa e nove...”

        – Agora, não dá... vai começar o show, olha lá o palhaço contando...

“Novecentos e noventa e oito, um! Respeitáááável público, com vocês: Guga Morales e Dani Morales!”

        – Depois do show, você me ensina a fazer mabalarismo?
      
        – Shiiiiiiii! Tô prestando atenção ali, não tá vendo?

        – Ensina?

        – Vou pensar. Agora, fica quieto!

Argolas para o alto, prato em uma mão, taça de vidro em outra. Bolinhas fazendo uma roda em frente ao malabarista vestido de azul. Claves rodando por cima das cabeças das crianças que acompanhavam o movimento dos objetos sem piscar, para não perder nem um minuto da festa.
Os dois garotinhos, agora, de pé em cima do banco da praça, assistiam a tudo admirados. O menor, de nariz pintado, de vez em quando lançava um olhar espantado para o amigo, como se pensasse “e ele sabe fazer isso tudo também!”... 

Fim do show, hora dos agradecimentos: 

“Esse foi o show de malabarismo da Duo Morales, no 4º Encontro Internacional de Palhaços...”

– Ele falou “ma-la-ba-ris-mo!”...

– É! Eu já te expliquei o que é mabalarismo, não expliquei?

– Mas não é mabalarismo que fala, o palhaço disse ma-la-ba-ris-mo!

– Olha que eu não te ensino a fazer nada!

O menino não insistiu. A vontade de aprender com o outro devia ser maior que a necessidade de ouvi-lo dizer a palavra de forma correta.
Enquanto o garoto de nariz pintado se distraía com o fim do espetáculo, o menino malabarista puxou a calça da mãe, que estava logo atrás dele:

        – Mãe, como é que se diz malabarismo?