terça-feira, 25 de novembro de 2014

Aquele abraço!

La autopista que conecta Buenos Aires con el ingreso sur de la ciudad de Rosario se llena de autos en la medida en que se acerca el CityCenter. ¿Todas esas personas decidieron ir al casino en la misma hora? Domingo de lluvia, noche ideal para hacer apuestas y probar la suerte en una de aquellas maquinitas que toman el dinero de quién insiste en creer en el suceso del próximo intento.

 – ¿Sabes por qué el lugar está tan lleno de gente?
– Todos vinieron por el show de hoy. ¡Yo también vine por eso! – Dijo la señora de sombrero largo sin esconder la ansiedad para lo que estaba por venir.

El casino más grande de Latinoamérica no es la estrella del día. Todas aquellas personas – jóvenes vistiendo camisetas de equipos de fútbol, mujeres con sus adornos y joyas finas, hombres de traje, chicas con celular en la mano para tomar la mejor foto – esperan por el show de Caetano Emanuel Vianna Telles Veloso, Caetano Veloso, el brasileño Caê.
Caetano llegó con su ropa tradicional, compañera de todas las presentaciones del show Abraçaço: una camisa gris, pantalones jeans y zapatillas negras y blancas. La sencillez de la vestimenta del cantante parece contradecir la complejidad de su voz, capaz de alcanzar los tonos más altos sin desafinar cualquier momento.
"Estoy muy feliz por estar otra vez en Rosario. Con Pedro (guitarrista) ya estuvimos aquí. Ricardo (bajo) y Marcello (batería) están por primera vez. Así que, para mí, es una alegría multiplicada". Multiplicando entonces su alegría y ritmo bahiano, Caetano volvió al palco de Rosario después de 16 años y presentó algunas de sus clásicas canciones seguidas de los nuevos hits del álbum Abraçaço. De una manera teatral, el bahiano bailó a su modo tropical y amenazó desabrochar su camisa para volver a cerrarla luego.
Mientras en el palco se mesclaban rock, samba y axé en un tipo de experimentalismo genial, tres chicos en el público exhibían camisetas de Fluminense, el equipo de fútbol de Caetano. En la otra esquina, una mujer insistía en traducir los trechos de las canciones para su novio, que escuchaba el gracioso portuñol: "Leãozinho quiere decir leoncito, que es algo parecido a un jaguar...", dijo ella entre sonrisas. Un poco más adelante, un señor se aventuraba a toda la tecnología de su teléfono, intentando sacar el flash de la cámara y para dejar de cegar a los demás con toda su luz.
En mi bolsillo izquierdo llevaba una bandera de Brasil. Estar allí, por primera vez cerca del cantante brasileño, era como estar cerca de todo el país, viendo las caras de mi gente en la poesía de Caetano Veloso. La timidez que, hasta el momento, me había impedido de sacar la bandera, se fue cuando la trayectoria de Carlos Marighella, militante muerto por los militares en la dictadura, ganó voz a través de la canción "Um comunista". Armado con su guitarra, Caetano repitió diversas veces el mensaje del activista brasileño: "una vida sin utopía, no entiendo que exista, así habla un comunista... Así habla."
Fueron una, dos, tres despedidas. Una para cada regreso de Caetano al escenario. Después de más de veinte canciones, encendieron las luces del salón y se terminó el gran abrazo a Rosario.
En la salida, la señora de sombrero caminaba más despacio que de costumbre. Encontró de vuelta a la chica que le había preguntado sobre el show y no se contuvo en decirle algo más.

– Hoy es mi cumpleaños. Soy fan de Caetano Veloso desde que el empezó su carrera hace cuarenta años. Estaba triste por no haber conseguido los ingresos para el show y, hoy, mis dos hijos fueron a mi casa y me regalaron una entrada. Hoy es mi cumpleaños. ¡El mejor que tuve en mi vida!
–¿Y que tal Caetano?
– ¡Un bombón!

Así salimos – yo, la señora de sombrero rojo, los chicos con la remera de Fluminense, la mujer traductora, el hombre que todavía no sabe usar bien su teléfono y todos que estuvieron allá – abrazados por la utopía y por el abraçaço bahiano-brasileño de Caetano Veloso. Como canta su compañero Giberto Gil, ese fue, ciertamente, "aquele abraço!".

* Texto publicado no jornal argentino "Reporte Platense" em novembro de 2014.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Retratos de Gaveta: histórias do interior de Minas


Bastidores

Retrato 1: Dona Dionísia, Piranga - Mariana 

Quinta-feira. Sol quente e céu azul. Mochila nas costas. Bloquinho e gravador nas mãos. Saí do centro histórico da cidade em direção ao bairro São Pedro, à procura de uma ruazinha escondida entre a estrada que leva até a BR e a que leva ao Hospital público. O morro é comprido, as casas não têm números, nem campainhas. As portas estão, quase todas, destrancadas. As janelas, muitas vezes cobertas de papelão ou pano, não têm trincas. Bati na porta da terceira casa, como orientou o rapaz da venda mais próxima.

– É aqui que mora a Dona Dionísia? Repeti alto para que a senhora que me recebeu pudesse ouvir.

– Não. A Dionísia mora naquela casa ali, sem pintar...

Nas outras janelas, os vizinhos se amontoavam, olhando com curiosidade a estranha visita. Subi uma pequena escada que dá para uma porta aberta. Não esperei muito, até que uma senhora com um lenço florido na cabeça apareceu com um ar desconfiado, limpando as mãos num avental branquíssimo, rasgado nas pontas.

- Dona Dionísia?
- É ‘ieu’, sim.
- Vim aqui conversar um pouco, a senhora está ocupada?
- Não estou, não, filha. Entra aqui pra dentro, pode sentar aí. É uma alegria!

E, depois de um abraço desses largos, como se fôssemos velhas conhecidas, mostrou um pequeno sofá, numa sala improvisada na entrada da casa. Sem saber ao certo o que dizer, com toda a inexperiência que trazia de brinde, perguntei sobre os gatos de estimação que dormiam por ali, contei que estava procurando boas histórias e que queria ouvir a dela.

- Tenho um filho que é poeta... Agora, ele está trabalhando como catador de papel, mas, daqui a pouco, ele chega. Eu sei histórias também, sei cantigas, mas o Zé, meu filho que é poeta, sabe umas mais bonitas que eu. Você não prefere?

Expliquei que eu queria ouvir sobre a sua infância, juventude, sobre os filhos, os amores, as alegrias...

- Então, você quer que eu fale da minha vida?
- Quero.
- Mas isso é uma alegria!

Com as mãos no rosto, sentada ao meu lado, Dona Dionísia começou a cantarolar alguns versos que repetiria muitas vezes ao longo das entrevistas-conversas e desarmou, com palavras simples e uma coreografia quase infantil, qualquer insegurança dessas que chegam em todo começo e encontro.

Três tardes de agosto. Sempre a mesma cortina improvisada com um pano vermelho cobrindo a janela. Os gatos cochilavam sobre o armário, indiferentes. Do quintal do vizinho, aquele cheiro de lenha queimada coloria, de cinza, o céu azul e a parte de trás da igreja. Entre cantigas populares e orações, relembramos 88 anos que construíram aquela senhora sentada na cadeira, com suas mãos enrugadas e olhos distantes. De tudo: – idades, pessoas, manhãs na roça, despedidas e chegadas –, o que se fez lembrar. Entre todos os muitos dias que compõem uma vida, os bonitos e grandes o bastante para caber no meu gravador de voz.  Dei voz e ouvidos.

No primeiro dia, apresentação e conversa. Conheci a casa e seus quatro cômodos. Os retratos pendurados na parede emolduram um abraço dos seus que já não existem mais. Vi panelas areadas no fogão e uma bicicleta velha, infantil, destoando do restante da casa idosa. Durante a conversa, duas crianças – os netos – ficaram sentadas no chão. O menino, mais velho, remendava o tênis com cola branca. A menina, pequena, brincava com uma escova de roupas usada. Ambos concentrados no próprio mundo, alheios a tudo que a avó contava e cantava para nós. Duas horas de conversa e a casa já tinha cheiro de lar, tão minha quanto de todos que ali moravam: muitos. Um abraço de despedida e a promessa de voltar no dia seguinte.

- Às vezes, tenho um refrigerante aqui em casa. Hoje, não. Nem café tem. Uma pena.

No dia seguinte, ao chegar à rua escondida que era a terra de Dona Dionísia, eu já sabia o que encontrar naquele presente constante: rotina certeira de um cotidiano comum. Reencontrei o meu lugar no sofá, a cortina e os retratos – hoje, sem pó –, vi Dona Dionísia com uma roupa engomada e os cabelos bem penteados debaixo do lenço de seda: tão velho quanto tudo que há ali.

- Ficou com saudade de mim, Dona Dionísia?
- Fiquei tanto que não tirei o olho da rua, pensando na hora de vocês ‘chegar’!

Abraço bom de reencontro. Perguntas em punho, gravador ligado e histórias menos alegres que a do dia anterior. A infância, agora, não era tão boa de se lembrar, nem os maridos e filhos, tão perfeitos. Agora seria hora de recordar os dias menos bonitos, as humilhações entre os sorrisos de bom dia, a fome que às vezes entrava na casinha de pau a pique. Tinha saudade. Medo, só do avião que nunca conheceu. Lembrou o sobrenome dos pais e esqueceu a própria idade. Inventou cantigas e repetiu outras tantas. Contou do dia em que conheceu seu Deus: milagroso.

Os dois meninos continuavam no chão, como antes.  Junto a eles, dois filhos, uma neta, um neto e uma nora de Dona Dionísia assistiam a minha entrevista-conversa, orgulhosos da mãe-vó-sogra e do passado que ela contava. Relembraram “causos”, descreveram os muitos lugares em que moraram, as dificuldades e as alegrias que traziam com eles. Corrigiram datas e idades, contaram mais de 20 netos e bisnetos como novos nomes da família, relembraram os que morreram e os que moram longe.

- Canta aquela, mãe, que a senhora cantava quando eu era pequeno...
Cantaram e ouviram. Como antes.
Tarde encerrada, lembranças mais teimosas em sair da gaveta, gravador desligado e bloquinho na mochila.
- ‘Fio’, corre ali e busca um refrigerante, diz que depois eu passo lá. Pede pra dividir na hora de pagar. Um só.

Indefesa ao agrado, revezei os copos com a família e bebi o refrigerante meio suco, comprado à prestação.

Terceiro e último dia: poucas perguntas, aquele checar de dados costumeiro e uma série de poses para a câmera fotográfica. Fotografei os gatos no telhado e a parede sem pintura. Uma, duas, três fotos de Dona Dionísia cantando e fazendo pose enquanto afinava a voz no “quando eu era pequenina, jogava bilboquê...”. Uma foto de família com a mãe ao centro e pronto. Trabalho feito.

 Agradeci menos do que queria, sem saber explicar ao certo o quanto estar ali havia sido bom. Mais um abraço e me levaram até a porta.

- Por que ‘cê’ escolheu ‘eu’ para contar a minha história?
- Porque a sua história é especial.
- Não ‘tô’ falando? A vida é boa demais e foi é Deus que trouxe você aqui...

Já virava a esquina e todos: Dona Dionísia, filhos, netos e bisneta, estavam ainda acenando. Quis voltar e agradecer de novo pela confiança, pela porta e coração abertos, pelo brinde nos melhores copos da casa. Agradecer por terem olhado para a rua para me esperar, pela boa vontade em compartilhar a vida, pela bondade presente entre os tijolos sem pintar que eu pude conhecer.

Ao deixar a rua escondida sob os pés de moleque que dão fama à cidade, agradeci por não ter ido em frente quando pensei em desistir de bater na porta, de subir o morro e seguir adiante. Entendi que, a cada entrevista e retrato bonito que fizer, sairei infinitamente menor: por sentir como uma formiguinha frente à grandeza das vidas anônimas que nos passam despercebidas e, sobretudo, porque, em cada lugar que passar, deixarei um pouco da minha história, que se apegará a essas gentes e vozes, presa e liberta por cada abraço que encontrar.

À noite, em casa, ouvi as gravações e transcrevi inúmeras vezes que “a vida é boa” e o “mundo é ótimo”. Ao olhar as fotos, gato preto e gato branco no telhado da casa, Dona Dionísia em preto e branco do lado de dentro, na sua cadeira perto do meu lugar no sofá. Em cor, os olhos dela ficam azulados. Na foto de família, filhos, netos, bisneta e agregados. Todos sorriem largo. Dona Dionísia, não: em nenhuma foto e em momento algum nessas tantas horas de uma conversa alegre, ela sorriu. Feliz.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Qual é a mala que te define?

Mala de mão. Mala gigante. Mochilão de viagem. De couro. De plástico. Vermelha. Com listras e com bolinhas. Há diversos tipos de malas, cada um pensado para servir a uma necessidade diferente: uma média para quem vai passar duas semanas na praia; uma grande para o universitário que leva as roupas sujas pra lavar em casa, como bem diz o ditado; uma mala enfeitada para os distraídos de plantão não perderem seus pertences na hora do desembarque; uma mala gigante para aquele que decidiu mudar de casa. Uma mala.  

Talvez um dos grandes dramas modernos – e que já possui milhões de adeptos – seja a agonia do fazer e desfazer malas. Escolher cada peça que terá o privilégio de sair do armário e conhecer outros cantos exige concentração. No entanto, essa agonia existe por algo um pouco mais essencial: as malas não carregam só roupas, sapatos, presentes. As malas carregam expectativas e, por isso, os tipos de malas dizem muito sobre quem as carrega.


Ainda me lembro da minha primeira mala. A ocasião: uma viagem com a escola e quatro dias num balneário, curtindo a agonia e a delícia de estar longe de casa pela primeira vez. A idade: 14 pouquíssimos anos. A mala: uma mochila da Company – sucesso na década de 1990 – que peguei emprestado da minha irmã mais velha. Essa mala, ou mochila, como preferirem, era descolada (na época) e representava, justamente, o começo da minha juventude.

A segunda mala tampouco era minha, assim de papel passado. Era uma mala de couro, meio brega, que o meu pai ganhou de presente de aniversário. A ocasião: um congresso de jornalismo e a primeira viagem a outro estado, sem nenhum acompanhante. A mala ainda não era minha, não tinha identidade, mas já era uma mala e não uma mochila. Tudo mais sério. Esses tais primeiros passos.

A terceira – e penúltima mala até então – é grande, esverdeada, com cadeados e rodinhas: um sucesso! A ocasião: o intercâmbio e a mudança temporária para outro país. Comprei essa tal mala num shopping, com a minha mãe me acompanhando numa quase cerimônia social que afirmava que a tal idade adulta tinha chegado de brinde. Saí com a mala da loja, ainda embrulhada num plástico, e, enquanto exibia a conquista como uma medalha, pensava na esperança que tinha (e tenho) de que ela me acompanhasse a lugares lindos.

A última mala foi comprada sem ajuda de ninguém. E não é bem uma mala, mas, sim, um mochilão daqueles enormes pra quem carrega uma vida na mochila e resolve sair por aí conhecendo sorrisos. Depois de tantas escolhas, está eleita: essa é minha mala. Informal, conservadora na sua rebeldia, alegre, com o medo escondido num bolso e a coragem tomando todo o espaço restante. Colômbia, Uruguai, Cuba... América Latina inteira. O roteiro já está definido, a mala – e a personalidade – seguem em construção.

Afinal, qual é a mala que te define?


segunda-feira, 14 de julho de 2014

Alemães, fiquem um pouquinho mais!

Durante o último mês, Santa Cruz de Cabrália, Bahia, recebeu a seleção alemã de futebol.  Os jogadores dançaram com os índios, viram novelas, falaram português, comeram farofa, gravaram vídeos, tiraram trocentas fotos e, para completar, foram embora e deixaram de presente um cheque de 10 mil euros para que a comunidade pudesse comprar uma ambulância.

Os brasileiros, por sua vez, não economizaram elogios aos alemães. Nas redes sociais, o amor pela Alemanha brotou com uma força tão grande que nem os sete gols puderam evitar. De tudo isso, o que mais chama a atenção é que o brasileiro, assustado pela atitude alemã, tenha se comovido mais com a solidariedade européia que com o fato de uma comunidade ter que contar com a boa vontade internacional para comprar sua própria ambulância.  

Se é assim, fica o pedido: alemães, fiquem um pouquinho mais! Não vão embora sem passar por Minas Gerais e conhecer as muitíssimas famílias do interior que se apertam em casas minúsculas por não terem como se mudar para outros lados. Não deixem de passar pelo nordeste e ver como é sofrer a pior seca dos últimos 50 anos com pouca ajuda do poder local. Passem por São Paulo, provem o pastelão e, de quebra, aproveitem para escutar as histórias que andam circulando nos metrôs, entre uma encoxada e outra. Voltem ao Rio de Janeiro, onde receberam a taça, e observem o quão violenta pode ser a nossa polícia.

Alemães, o Brasil tem um coração grande e possui uma desigualdade social ainda maior. Nosso Estado, que é um dos mais ricos da América Latina, não consegue enxergar que a comunidade em Santa Cruz precisa de uma ambulância ou que, em Roraima, o sul do estado anda sofrendo com uma situação quase à beira do caos.  O nosso Estado que, esse ano assistirá e participará das disputas eleitorais, se sente tão orgulhoso das boas mudanças nos últimos 12 anos que parece se esquecer que ainda há muito o que fazer para acabar com a pobreza no país.

Estamos a poucos meses das eleições. Alemães, fiquem um pouquinho mais e convençam o Podolski a sair por aí lembrando a cada cidadão o sentido de ser brasileiro. Não vão embora, alemães, até que possamos dizer “Não, muito obrigado” a qualquer presente como o cheque que vocês deixaram e que, para quem entende que nem tudo é futebol, doeu (bem) mais que os sete gols que vocês fizeram contra a nossa seleção.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Maria de um tal João

“É com muito prazer que lhe devo a honra de vir aqui ‘de frente’ aos meus compadres e amigos, com toda fidelidade, pra pedir a mão de sua filha em casamento para que possamos compartilhar o dia a dia.” Após seguidas semanas de ensaio, foi esse o discurso que os convidados de Maria de Fátima Gentil Soares ouviram no dia do seu noivado.  Fatinha, como é conhecida, escutou o pedido de casamento no rádio e fez com que o candidato a noivo João Bosco, o Joãozinho, repetisse as frases feitas.

Assim como a história dos personagens homônimos do conto dos “Irmãos Grimm”, o noivado de Joãozinho e Maria de Fátima foi bastante singular: ela tinha apenas doze anos e o noivo, treze. Ambos moradores de São Pedro dos Ferros, interior de Minas Gerais, Fatinha e Joãozinho começaram a namorar no dia em que se conheceram, na capelinha da cidade. “Quando ele saiu da capela e me deu um beijinho no rosto, pensei: Opa! Vamo namorar!”, relembra. A partir desse dia, Fatinha começou a juntar todo o dinheiro que ganhava vendendo abóboras para comprar o bolo do seu noivado e uma garrafa de refrigerante – foram necessários três meses pra conseguir a tal quantia.

Pela pouca idade da filha, o “Sô” Manoel e a Dona Rita não aprovaram a decisão que viria apenas seis meses depois de partido o custoso bolo do noivado: ainda com doze anos, Fatinha saiu de casa para ir morar com Joãozinho, no distrito de Furquim, a 60 km da terra natal do jovem, bem jovem, casal. Levando na mudança apenas um colchão, Fatinha e Joãozinho deram início à promessa de “compartilhar o dia a dia” que está durando até hoje, 21 anos mais tarde.

Antes de iniciar essa “loucura” de sair de casa, Fatinha, junto aos seus quatro irmãos, trabalhou, desde os três anos, na lavoura de arroz com os pais, todas as tardes, depois de frequentar as aulas na escola de São Pedro dos Ferros, a 20 km de sua casa.

Devido ao seu pavor em ter que ficar dentro da sala de aula, sem poder sair ou falar sem permissão, num tempo e lugar onde os professores usavam da força física para conseguir disciplina das crianças, Fatinha abandonou os estudos ainda na terceira série primária, atual 4º ano do Ensino Fundamental, aos nove anos. Para esconder dos pais esse abandono, a menina continuou cumprindo a mesma rotina de todos os dias: acordava às quatro horas da manhã, andava por mais de 40 minutos numa estrada de terra, de mochila nas costas, em direção à escola. No entanto, escondia os materiais em uma bueira da estrada e passava a manhã vendendo abóboras para, com o dinheiro das vendas, comprar um vestido de chitão. Demorou quase um ano para que os pais descobrissem que Fatinha não ia mais às aulas.

Contrariando a tradição da época, os pais de Fatinha pouco utilizaram de castigos físicos na educação dos filhos. Sempre que surgia alguma “levadice”, tal qual essa de não ir à escola, “Sô” Manoel e Dona Rita faziam um longo sermão, que, pela dureza e simplicidade das palavras, doíam mais que qualquer surra ou puxão de orelha.

Como em quase toda regra, há uma exceção, um dia Fatinha apanhou muito, de vara de marmelo. Para conseguir tamanha façanha, a de irritar a calma Dona Rita, Fatinha e seu irmão mais novo, Helinho, encontraram uma garrafa de aguardente que o pai, “Sô” Manoel, havia enterrado no terreiro de casa para que a bebida ficasse mais curtida, mais forte. Os irmãos, então com dez e oito anos, respectivamente, de tanto “provar” aquele estranho achado, ficaram embriagados. Ao encontrar os filhos rindo excessivamente pela casa com a garrafa nas mãos, dançando sem música e falando coisas desconexas, Dona Rita logo compreendeu o que havia acontecido. Para entender que “aquilo não era coisa de criança”, os meninos apanharam. Devido ao efeito do álcool, Fatinha não sentiu dor alguma, só entendeu o que tinha acontecido quando acordou no dia seguinte e os irmãos contaram o tragicômico episódio.

É com essa forma de educar, priorizando o diálogo em relação aos tapas e beliscões, que Fatinha e Joãozinho educam seus três filhos: Fernando, 17 anos; Amanda, 15 anos e João, o “Nenê”, 13 anos. Fernando nasceu poucos meses depois que Fatinha saiu de casa para morar com Joãozinho. Aos treze anos, ela “brincava de boneca” com um bebê de verdade. Sem ajuda dos pais, que ainda não haviam aceitado o casamento, e sem entender nada de criança, as dificuldades em criar o menino foram imensas. Para piorar a situação, Fernando foi um bebê pouco saudável, sempre estava doente por um ou outro motivo.

Em uma dessas doenças, foi receitado a Fernando um remédio em pó, que deveria ser dissolvido em água nas quantidades indicadas pelo médico. Fatinha, pela sua pouca idade e muita ingenuidade, tentou fazer o bebê tomar o remédio a seco. O menino quase morreu engasgado. Hoje, anos mais tarde, Fatinha relembra esse “sufoco” pelo qual passaram - ele, literalmente - com humor.  
            
Fatinha viveu em Furquim com Joãozinho e Fernando até o nascimento da segunda filha, Amanda, quando foi morar em uma fazenda nas redondezas de Belo Horizonte. Na fazenda, Fatinha cuidava dos filhos pequenos e, para ajudar com os gastos, trabalhava como cozinheira na sede. Foi nessa fazenda que, dois anos mais tarde, nasceu o “Nenê”, filho caçula do casal.
            
Uma vez por semana, Fatinha, acompanhada dos três filhos, ia, numa carroça, até o centro da cidade com o objetivo de comprar e vender coisas. Em quase uma hora de “viagem”, a família enfrentava os “empaques” da mula que puxava a carroça toda vez que o movimento de carros se intensificava. Fatinha não tinha vergonha nenhuma em descer da carroça e segurar pelas rédeas o animal teimoso. Afinal, “quem fez o seu patuá, que o carregue!”, brinca.
            
Passados os quatro anos nos quais viveu em Belo Horizonte, Fatinha voltou a Furquim, para a mesma casa da vida de recém-casada. E é lá que ela vive atualmente, com os três filhos e o marido.
            
Localizada na Fazenda São Geraldo (Furquim), a 110 km de Mariana, interior de Minas Gerais, a pequena casa de Fatinha está sempre com fumaça saindo da chaminé, o fogão à lenha só “descansa” à noite. Todos os dias, às 5 horas da manhã, Fatinha já está com seu café coado, pronta para sair. Levando consigo uma “marmita” para o almoço, ela trabalha cortando cana até às 18 horas, quando volta para casa e prepara o jantar.
            
Aos 33 anos, o maior divertimento de Fatinha é assistir às telenovelas durante a semana. O sossego de estar em casa, próxima aos filhos e ao marido já é motivo de felicidade e faz com que ela não tenha nenhuma vontade de morar na cidade. Num mundo em que “é difícil encontrar gente de bem”, morar na “roça” pode ser um privilégio. Fatinha não tem vontade de conhecer nenhum lugar, vê-los pela televisão já é suficiente.
            
Fazendo jus ao ditado popular “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, Fatinha faz questão de que seus três filhos frequentem a escola regularmente. Ao contrário da mãe, hoje os meninos têm um carro que os buscam para a aula e não precisam trabalhar para ajudar nas despesas de casa. Após tantas dificuldades enfrentadas pela vida afora, Fatinha vive hoje uma vida economicamente estável e, ao se lembrar do passado, conclui que as coisas melhoraram muito.
            
Esse mesmo passado se apresenta para Fatinha como uma grande sucessão de loucuras: sair de casa ainda criança, morar próximo a uma cidade grande, deixar de estudar...
            
Apesar de classificar seus atos como “loucuras”, especificamente o casamento precoce, Fatinha não hesita em dizer, entre altas risadas, que faria tudo outra vez da mesma forma, com exceção talvez do episódio em que encontrou a garrafa de aguardente do pai. “Se saímos de casa meninos e estamos juntos até hoje é porque, no mínimo, posso falar que deu certo”, diz.
            
Certamente, o compositor brasileiro Chico Buarque não conhecia João Bosco Soares, tampouco Maria de Fátima Gentil, quando escreveu sua música titulada “Joãozinho e Maria”. No entanto, parece ser para eles que o poeta dedicou os versos: “no tempo da maldade, acho que a gente nem era nascido...”

             

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Dona Dionísia: a menina que jogava bilboquê


Foto: Jamylle Mol
Nasci em Piau, um pequeno povoado da cidade de Piranga, na Zona da Mata mineira. Meu pai, José Cantaro da Rocha, e minha mãe, Maria Mônica de Oliveira, cuidavam de mim e dos meus irmãos: Jandira, Efigênia e Geraldo. Comecei a trabalhar muito cedo: olhava menino pros outros, apanhava café, capinava arroz... Fazia um serviço bruto mesmo. Tinha muita gente em casa, então, todos tinham que trabalhar. Passei a infância só trabalhando e trabalhando. Cheguei a ir pra escola, mas não aprendi nada. Eu gostava da escola, mas não entendia as coisas. Até hoje, eu fico assim “Por que é que eu não aprendi a ler, meu Deus do céu?”. Nem meu nome eu sei escrever direito. Mas vivendo assim mesmo. Tem muitos aí que sabem ler, mas não sabem viver. Eu não sei ler, não, mas já vou levando bem a minha vida.

Minha mãe era muito boazinha, não brigava com a gente. Não deixava os filhos intrometerem no assunto dos mais velhos, não podia passar na frente da mãe nas conversas porque era muito feio. Só podia ficar escutando... A gente era muito pobre, nem roupa direito eu tinha. Quando ganhava um vestidinho novo, já ficava toda alegre e dava graças a Deus! Vivia todo mundo perto, em Piranga mesmo, cada um esparrodado em um canto. Não lembro muito de quando eu era criança porque já faz bastante tempo. Sei que era uma luta, mas valeu a pena!

Quando eu era pequenina, jogava bilboquê
O tempo foi passando e eu cresci, não sei pra quê
Saudade do colégio, eu fazia o que queria e nada me acontecia
Era tudo diferente!
Hoje, não posso fazer nada porque eu vivo no batente...
(Em meio à conversa, Dona Dionísia canta os versos)

Meu pai morreu muito novo, antes mesmo de eu me casar. Não era bravo, deixava a gente ir ao baile. Eu ia pro baile de vez em quando, e, se me ofereciam alguma bebida, eu esperava a pessoa olhar pro lado e jogava fora. Gostava um pouco de vinho só. Também gostava de carnaval e de cantar. Sempre gostei muito de cantar. Colocava um saião e ia pra rua, quando era dia de festa.

Casei aos 19 anos, com o Laurídes, que também era de Piranga. Não namorei muito, não, porque, como diz o ditado, namorar não é pecado, se tiver com amor. Namora moça solteira e, as casadas, conforme for. Casei direto mesmo. Como meu pai já tinha morrido, não precisei de autorização.
Um dia, meu marido falou: “arrumei um serviço lá em Mariana, cê vai comigo ou vai ficar aqui em Piranga?”. Não, meu fio, eu vou pra lá, uai. O que é que eu vou ficar fazendo aqui sem você? Aí, juntei tudo que eu tinha, fui pra linha esperar o trem de ferro que ligava Piranga à Mariana, despedi dos amigos e vim embora pra cá. Nessa época, eu tinha uns vinte e poucos anos. Fui morar lá no Matadouro, que é muito longe do centro da cidade.

Trabalhei em hotel e em muitos restaurantes: o de Sô Quim, o do seu Zé de Souza, o do Jovelino... Cozinhava nesses lugares e lavava roupa pros outros. Depois, comecei a tomar conta das pessoas de idade: cuidei de Dona Violeta, ali na Rua Nova, durante muitos anos, até ela morrer. Olhei a Dona Marta, Dona Inácia e Dona Ninita – que eram irmãs – Dona Ritinha do Santana, Dona Odete... Foi muita gente mesmo que eu tomei conta, graças a Deus! Cuidei de criança também, mas o povo antigo dava menos trabalho. Criança não para, os velhos ficam quietos, é só dar banho, comida e remédio na hora certa e ter paciência com eles. Os antigos não gostam muito de conversar, ficam mais calados.  Só a Dona Marta que gostava muito de falar, ela me colocava pra cantar uma música esquisita, cheia de palavra feia. Eu ficava na varanda e ela falava “Dionísia, vamos cantar aquela música?”, eu não gostava, mas cantava pra dar gosto pra ela. A vergonha era tão grande que eu ficava até meio escondida, mas ela batia tanta palma que eu falava “Ô, Dona Marta, que música bonita! Que música bonita, Dona Marta” e ela ficava toda alegre comigo.

As pessoas gostavam muito de mim porque eu era honesta. Ganhava uma roupa velha ou outro trem qualquer, mas tirar por conta própria, nunca tirei nada. Eu vou pegar uma coisa sua e não vou falar nada? Não vou, não. É errado, uai. O que é meu é meu. Ensino isso pros meus netos, falo como é que eles devem andar. “Não mexe na sacola dos outros na escola, viu?”, eu sempre falo pra eles porque é melhor prevenir.

Tive oito filhos. Dos oito, morreram a Maria, a Francisca, a Lurdes e o Zé Geraldo. Morreram de bobeira, por causa da bebida. Mas, por exemplo, se eu falo pra você “não passa aqui porque é meio perigoso”, o que é que você tem que fazer? Dar a volta, não é? Mas eles não deram, aí, quando foram se arrepender, já era tarde. Morreram de bobeira. Eu falava que bebida não presta pra nada, só prejudica o organismo, beber pra que? Faz igual ieu que não vou na ilusão de qualquer coisa. Mas não me ouviram.. Saíram de casa e morreram morando na rua.

Quando eu trabalhava, deixava os meninos na creche e buscava de noite. Era difícil a luta, mas a gente tem que passar pela vida é alegre porque tristeza acaba com a pessoa. Morava num barraco de pau a pique: já morei no Matadouro, como eu disse, no Vamos-vamos, no Morro Santana e no Rosário. Quando mudei pra essa casa onde eu agora, chovia tudo aqui dentro, dava aquela enxurrada e molhava as coisas. Morei em muitos lugares, mas o verdadeiro mesmo é esse de agora.

Eu ia trabalhando nas casas de família, ganhava roupa e mantimentos. Às vezes, nem café os meninos tinham pra ir pra escola.  Já sofri um pecado mesmo, mas nem gosto de lembrar. Já passou mesmo, ? O Laurides, meu primeiro marido, também ajudava em casa. Ele trabalhava esvaziando caminhão de entrega no supermercado. De vez em quando, ele trazia um pacote grande de comida misturada, que catava dos sacos que arrebentavam no caminhão. Tem mulher que olharia aquilo tudo: feijão, macarrão, arroz, tudo misturado, e falaria que não ia comer. Mas eu catava tudo – feijão prum lado, macarrão pro outro – lavava tudo bem direitinho e colocava pra cozinhar. E ninguém morreu por isso, nem nada. Quando ele chegava com o pacote, eu ficava com o coração humilhado, mas fazia tudo e todo mundo comia bem nesse dia.

O Laurides morreu de tristeza. Ele tinha um patrão que judiava muito dos empregados. Um dia, o Laurides me perguntou: “será que almoço primeiro e só depois lavo o açougue?”, falei pra ele almoçar primeiro. Ele almoçou e o patrão queimou o pé dele com ferro quente, desses de marcar gado. Pelo atraso, o patrão fez essa covardia. O povo chamou a polícia, acho que passou até na televisão. Ele ficou em casa, com o pé machucado, deitado na cama: “esse tanto de filho pra tratar aí e eu sem poder ajudar”... e foi entristecendo com aquilo e não aguentou, morreu de tristeza. 

Casei de novo, com o João, porque solidão não presta, não, e eu gosto de andar a vida toda alegre e cantando.

Amor é uma semente que a gente planta pra colher
No coração da gente, com a idade, vai nascer
Quem planta bem, colhe bem
Quem planta mal, colhe mal
Porque o amor é um pecado original...
(Em meio à conversa, Dona Dionísia canta os versos)


O João era vigia, fazia ronda noturna. Era muito bom pra mim, o meu véio. Um dia, eu estava tomando conta da Dona Violeta, quando voltei pra casa, não encontrei ele em lugar nenhum. “Ai meu Deus do céu! Aconteceu alguma coisa com o João”. Depois de um tempo, a minha vizinha apareceu pra falar que tinha acontecido um acidente com ele. O João ia pro serviço todo limpinho, mas, quando eu cheguei ao hospital, ele estava todo sujo de poeira da mina onde ele trabalhava fazendo a ronda. “Dois ladrão acabou comigo de noite, me empurraram pra barranceira... custei a conseguir subir, Dionísia”, ele falou, todo sujo. Pegamos um carro que apareceu por lá e fomos até à delegacia dar queixa. O João recebeu alta e veio pra casa, mas ficou meio abobado. Bater na cabeça é triste, ? E ele não aguentou e morreu. Tão bom que o João era...

Meus dois maridos eram muito bons, mas sempre tem uma tristeza pra atrapalhar. Na vida toda, sempre aparece uma coisa ruim, mas tá bom assim mesmo. A vida é muito boa, depende da pessoa saber levar ela. O povo fala muito que o mundo ruim. O mundo não ruim, não, as pessoas é que não sabem andar por cima dele, mas o mundo? O mundo é ótimo.

Quando fiquei viúva, encontrei muitas tentações: vinha à noite e passava ali perto da igreja do São Pedro, olhava pra baixo e tinha um precipício me cercando e, pra não correr o risco de nada, eu cascava pro outro lado. Tinham uns homens no caminho que eu fazia pra voltar pra casa, sempre tarde da noite, eu passava e eles diziam “ô, mulher difícil!”, sou difícil mesmo, eu respondia e continuava andando. Graças a Deus!

A vida é muito boa. Tem hora, que eu fico recordando o meu passado: pra quem não tinha nada, vivia na casa dos outros, às vezes, até aguentando desaforos, hoje, está tudo muito bom. Quem quiser, pode vir até a minha casa e vai encontrar o que comer e o que beber também. A gente vive é pros outros, não é?

Quando eu morava na casinha de pau a pique, aqui nesse bairro mesmo, ganhei um pedaço de terra. Passaram alguns dias, uma dona veio até a minha casa e me pediu um pedaço dessa terra que eu ganhei. Ela queria construir um barraco. Eu dei com o maior prazer porque é dando que se recebe. Enquanto o pessoal dela construía tudo, eu ajudava a ajeitar as coisas, a olhar os meninos e a lavar roupas. Quando o barraco dela estava prontinho, me chamou e disse que ia construir um muro com tijolos, pra eu ficar de um lado e ela, de outro. Disse, na minha frente, que, assim, uma não veria cara da outra. Quando ela me disse isso, eu senti uma dor esquisita no meu coração, mas pensei que Deus num veio no mundo só pra um. Fiquei sem graça, quietinha no meu barraco sem sair pra nada. Acordei sem graça no dia seguinte e fiquei olhando a poeira que subia com o vento, pedi pra Deus livrar todas as ilusões da minha vida, o meu coração estava triste mesmo. Nisso, brilhou uma luz no meu caminho, passou um raio parecido com um relâmpago e eu pensei “que luz é essa?”, não estava chovendo, nem nada, não passava carro, não tinha ninguém na rua. Ouvi uma voz no meu ouvido, dizendo que Deus estava comigo. Fiquei tão alegre que cantei a tarde toda. A minha casa estava caindo, eu estava viúva. Mas, mesmo assim, fiquei feliz porque Deus apareceu pra mim, porque Ele estava comigo. Não demorou muito e eu consegui fazer uma casa nova, de tijolos, que é essa em que eu moro hoje. Por isso, falar que a vida tá ruim é um pecado. Tudo tem o tempo certo: tem o tempo de colher pedra, tem o tempo de espalhar pedra, tem o tempo de rir e o tempo de chorar. Tem tempo pra tudo.

Eu sou uma pessoa muito amorosa. Se todas as pessoas fossem assim, não tinha nada de ruim nesse mundo. Não gosto de ver ninguém reclamar nada, ninguém pode sofrer perto de mim. Se eu pudesse, limparia tudo de errado que existe. Limparia tudo na hora mesmo. Às vezes, aparece alguém aqui em casa com alguma dor, eu rezo pela pessoa e ela melhora. Outro dia, apareceu uma mulher aqui que sofria de muita dor de cabeça, ela queria que eu ensinasse um chá. Ensinei que folha ela pegaria e fiquei rezando pra ela, sem ela saber. Quando chegou em casa, nem precisou do chá porque ela já estava curada! Mas isso tudo é porque tem que confiar na vida e em Deus.

Não sei quantos anos eu tenho, se é 74, ou 87. Minha filha, Elvira, olhou o documento e disse que eu tenho 88 anos. Estou pequenina ainda, não estou? Vivo trabalhando até hoje e, todos os dias, agradeço por tudo que eu tenho, porque, antes, eu não tinha nada. Sou viúva duas vezes, sim. Mas outro dia, apareceu um véio aí querendo casar comigo. Eu não sei se quero, não sei se não quero, estou assim: meio cá, meio lá. Mas a solidão não é coisa boa. Você ter alguém pra acompanhar na igreja e cuidar de você é ótimo. E, pra isso, eu sou muito boa: não deixo o véio passar fome, nem sede, não deixo andar sujo. Comigo, é tudo muito certo. Mas tem que me acompanhar na igreja, senão, como vai ser? Assim, não pode. Dois cabritos não bebem água na mesma cumbuca, não, porque o chifre é grande! Então, tem que ir comigo à igreja. Esse véio que apareceu e quer casar comigo trabalha de ronda, como o João, meu último marido que morreu. Ronda é muito perigoso. Só disso que não gostei.

Hoje, sou aposentada. Meu patrão, o filho da Dona Violeta, de quem eu tomava conta, me ajudou a pagar o INPS. Agradeço a alma dele todo dia. “Ô, Dona Dionísia, vou ajudar a senhora a pagar o INPS, viu? Porque, assim, quando a senhora sair daqui, vai ter um ganhozinho”. Obrigada, Sô Hélio, Deus abençoe o senhor e a sua família! O meu velho que morreu também deixou um cadim pra mim... e vivo assim: em pé, sem cair, deitada, sem dormir!

Ainda vou conseguir mais vitórias porque a vida é muito boa. O mundo tá muito bom, não quero morrer agora, não. Quero muita vida. Vida com saúde! Quero fazer uma área aqui em casa, mas nunca que ela sai. A gente não ter uma pessoa pra ajudar é muito ruim. Tenho meus filhos, mas eles pouco ligam pra isso. Meu filho, Marco Aurélio, trabalha em um negócio. O Zé, meu outro menino, trabalha catando papelão lá na rua. Ele mexe muito com esses ‘troços’ de poesia também, já escreveu até no jornal. A Elvira mora aqui em casa, na parte de baixo. Não sei quantos netos eu tenho, mas são muitos! Não lembro o nome deles, mas fico de olho em todos porque não gosto de ver ninguém maltratado, ninguém sofrendo. Tenho vontade de voltar pra roça, mas só se eu arrumar um véio pra ir comigo. Eu iria feliz, plantar e criar galinha. Roça é uma beleza e eu gosto muito de ‘criação’. Quem sabe ainda não vou, né? Às vezes... quem é que sabe?

Menina dos dentes claro
Parece canjica grossa
Me dá seu braço, morena
Me leva pra sua roça?
(Em meio à conversa, Dona Dionísia canta os versos)

Acordo, todos os dias, às 8h, porque já levantei muito cedo nessa vida. Hoje, não preciso mais. De vez em quando, vou ao centro da cidade, a pé mesmo. Pra voltar, venho de ônibus porque o morro é comprido, é muito longe. Aos sábados, às vezes, vou à Igreja. A igreja tira as tristezas do coração da gente, parece que o que eles leem lá foi escrito pra mim e, por isso, eu volto pra casa satisfeita. Não saio muito daqui, nunca viajei. Já fui visitar meus irmãos que moram nos asilos em Lafayete e em Ouro Branco. Eles nunca vêm me ver, só eu vou lá. E, olha bem: eles têm carro, podiam vir. Mas nunca vêm.
Meu divertimento é cantar. Eu não sei ler, como eu já contei, mas as palavras vêm assim na minha cabeça e eu canto. A cada dia, canto uma coisa nova. O tempo que cantando ou na igreja é o tempo feliz.

Por causa dessas coisas que eu canto, essas histórias e poesias, veio um rapaz aqui me gravar. Cantei um pouquinho e, quando fui ver, eu estava aparecendo na televisão. Pensa bem: ieu na televisão. “Ai, Dionísia, não tá fácil, não!”. Acho que passou e todo mundo viu, não sei. Você não chegou a me ver, não? Apareci lavando vasilhas e cantando, bem ali dentro da televisão.

Ainda lavo, passo e cozinho todos os dias. Não consigo ficar parada. Os antigos já diziam: “Deus no céu, trabalho na terra e dinheiro no bolso”. Tenho saudade dos meus irmãos e do tempo em que eu trabalhava com a enxada, apanhando café ou cortando cana. Era muita luta, mas eu cantava o tempo todo. Medo, não tenho nenhum. Só dessas pessoas que andam por aí fazendo maldade. Mas o mundo é muito bom, não tenho do que reclamar. Já estou feliz demais, só de você estar aqui. Tenho muito medo de avião também, não entro em um desses por nada porque dá medo demais, nem pra conhecer a praia, eu entro.

Se eu tinha vontade de ver o mar? Uai, eu ainda tenho!