Especial - Argentina

O Destrocando em Miúdos colocou as ideias na mochila e decidiu conhecer o mundo de alpargatas na Argentina. Entre calles e esquinas de diagonais, Quilmes e vinos em caixas de leite; entre a política da América Latina e historietas da Mafalda, alfajores, cucarachas e hola-que-tais, o Destrocando foi (ou veio?) descobrir outros pequeños, outras histórias e outro mundo. Uma Canon, um gravador e um bloquinho na mochila de quase jornalista. O medo do novo e do longe, ainda que perto. A saudade de um Brasil que não sabe (só) sambar. E, como diria o Chico, dentes e coragem. Acompanhe tudo (ou do tudo, o que fica) na série de postagens “Destrocando de Alpargatas”

* Para ler tudo, desde 8 de abril de 2013, basta descer a seta à direita e acompanhar todas as postagens.



                                  11 de julho de 2014, La Plata

Go, Argentina!

A Argentina é um país genial, de gente linda, elegante e sincera (tanto que vim pra ficar quatro meses e já estou há quase 2 anos por aqui). Mas, quando o assunto é futebol, a coisa muda um pouco de figura e, às vezes, fica difícil não sentir uma pitada (ou um balde bem cheio) de raiva dos nossos hermanos (ou papás, como queiram). Imagino que, para os argentinos, pouco importa se os brasileiros torcem por eles ou não, como, da mesma forma, já temos nossos 200 milhões (ou menos, pelos que torcem contra) de carinhas sofridas pelo último 7 a 1. No entanto, aqui vão alguns motivos para torcer ou não pela terra do Messi no próximo domingo:

5 motivos para vestir o azul e branco e gritar “Vamos, arrrrrrrentina!”:

1-      É a terra do Messi, oras. E o danado do menino, além de ser uma fofura fora do campo, sabe jogar bola como ninguém e, por isso, merece trazer a taça pro seu país.

2-      Somos América Latina e, clichês à parte, é importante – em diversos aspectos – naturalizar uma certa irmandade ao invés de sair por aí cultuando e criando rivalidades repletas de ignorância e ódios tolos. Seria lindo ver pessoas tão acolhedoras e bem humoradas comemorando seu tricampeonato!

3-      Os argentinos já esperam por uma vitória em mundiais de futebol há 28 anos e a verdade é que fazer a piada de que eles têm menos copas do mundo que o Pelé já perdeu a graça...

4-      O futebol argentino, que andou meio caído (como o nosso está agora, ou um pouco menos), mostrou uma garra sem tamanho no jogo de ontem e é lindo ver gente que sente e demonstra essa emoção toda com a bola nos pés.

5-      Quer um exemplo melhor pra mostrar que a Copa não foi comprada?

5 motivos para ser alemão desde criancinha:

1-      Às vezes, a impressão que dá é que, para muitíssimos argentinos, é mais importante ser contra o Brasil do que esbanjar vontade pela própria seleção. “Para mim, ganhar uma copa do mundo NO BRASIL é melhor que ser pentacampeão”, dizem.

2-      Os comentaristas e narradores de futebol na televisão argentina são completamente imparciais (e eu achava que o Galvão Bueno era ruim de doer) e, desde o início dessa copa do mundo, destilaram comentários maliciosos e de uma ironia dolorosa sobre o hermano aqui do lado.

3-      Não ter mais que escutar (ou escutar menos) a música que vem embalando as praias cariocas “Brasil, decime que se siente...” e, junto e no mesmo pacote, economizar nos acenos de cabeça e sorrisos amarelos na hora dos tradicionais “Maradona es mas grande que Pelé”. Na boa, que coisa chata!

4-      Sair pelas ruas e escutar coisas como “fomos recorrer as suas putas e ainda levaremos a taça” e “tira essa camiseta do Brasil, boluda!” fazem com que o grito de “vamos, Argentina!” fique entalado na garganta.

5-      Por essa rivalidade (que sim, é boba demais!) que nos ensinam desde criancinhas, dá, sim, uma pontinha (ou um iceberg) de tristeza ver a celeste e branca receber a taça no nosso estádio. “Vlw, flws!”, boladona, que dor no cotovelo.

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                                             17 de junho de 2014, La Plata


 Brasil, decime que se siente...

‘Maradona és más grande que Pelé’.

O imaginário popular argentino é repleto dessas frases feitas de um bom gosto questionável.  Ao que parece, para uma grande maioria de torcedores da celeste e branco, é mais importante ir contra o Brasil do que torcer para a sua própria seleção. “Vou por qualquer país latinoamericano, desde que não seja o Brasil”.

O futebol é, teoricamente, um esporte que se joga dentro de campo, com um juiz apitando o jogo e os torcedores gritando como loucos ao ver a pelota correndo de lado pra outro. No entanto, quando o assunto é Copa do Mundo, a bola insiste em fugir do gramado e as reações se tornam exageradamente maiores. O que está em jogo parece ser a nacionalidade de milhões de pessoas, que assistem a uma disputa para saber qual país é melhor, numa tentativa quase infantil de garantir a piada pronta para os próximos quatro anos ou de trazer à tona a terceira guerra mundial.

Por tudo isso, assistir a um mundial de futebol em um país que não é o seu não é a coisa mais legal desse mundo: é conviver com as bandeirinhas de outras cores, assistir à comemoração de gols que não são os ‘seus’, escutar as piadas que não têm um contexto conhecido. Generalizações à parte, para um brasileiro, assistir a um mundial de futebol na Argentina é se acostumar com um semi-ódio declarado ou escondido entre os meios sorrisos de bom dia. Infelizmente.

As frases feitas que fazem parte do espanhol repleto de que sé yo’s, como o clássico ‘Maradona es mas grande que Pelé’ têm pouco – ou nenhum – sentido. E não, não me refiro ao fato de que o Pelé ganhou três copas do mundo e que gritou “gol” mais de mil e tantas vezes (e que o Dieguito não fez nada disso). A falta de sentido é mais óbvia: cada ídolo – seja ele do futebol, da música ou do que seja – tem sua própria história, com seus bem-feitos e mal-hechos. Repetir como um papagaio – ou um loro, como dizem aqui – que o Don Diego é o cara (abre o olho, Roberto Carlos!) soa mais como uma insegurança em cultuar seus próprios ídolos do que qualquer outra coisa. O que muitos não sabem, ou parecem desconhecer, é que é possível admirar algo sem desmerecer o que está ao seu redor.  

Maradona e Pelé já não jogam há trocentos anos. A Copa de 1990 já terminou há séculos. O que parece não passar é essa vontade besta de criar uma rivalidade mais besta ainda.

Maradona es mas grande que Pelé. E eu só queria poder comprar o pão sem ter que escutar isso todos os dias de manhã. 




17 de abril de 2014, La Plata

O Destrocando de Alpargatas esteve de havaianas por uns tempos, presenteando os dedos dos pés com uma paisagem que tem cheiro e jeitinho de casa. No entanto, como os passos existem para levar a outros caminhos, as histórias argentinas estão de volta, entre o amargo do mate e o doce do dulce de leche. E, para o regresso, o tema é, justamente, os caminhos.

As pessoas dizem que existem dois caminhos: o mais fácil e o mais difícil. O mais fácil – ainda que, entre suas curvas, traga um punhado de dúvidas e dificuldades – é mais simples. Em geral, já traz consigo uma prévia do que possivelmente há no final da estrada e o percurso tem mais flores que espinhos.

Por outro lado, o caminho mais difícil é misterioso. Como alguém que mergulha de cabeça num lago de águas turvas, quem escolhe esse percurso tem que estar sempre atento às novidades que virão, sem saber ao certo se o fundo é um lugar bom para colocar os pés.

Quando se termina um processo – como um curso superior – existem muitos caminhos a se seguir e cada um deles tem seus encantos e agonias. Optar por viver em outro país (por mais perto que seja) é uma escolha cercada por especulações...

 Há uma ideia de que tudo que está lá fora é melhor (a síndrome de vira-lata que insiste em fazer ver gramados mais verdes em outros lados). De fato, estar em contato com uma nova cultura, um novo idioma e histórias diferentes é ter uma oportunidade de aprender mais e crescer. No entanto, o que não é divulgado nas redes sociais, entre uma foto na Plaza Italia, na Torre Eiffel ou em qualquer outro lado, é que essa escolha, por vezes, é difícil e solitária.

O novo, como poetizou Pessoa, tem um quê de horrível. Acostumar a uma vida totalmente diferente da que sempre-tivemos-graças-a-deus dá um nó na cuca e embrulha o estômago. Uma sensação parecida com o pular de algum lugar muito alto. E fazê-lo todos os dias pela manhã. Optar por largar propostas razoáveis de uma vida estável e possivelmente tranqüila e se arriscar por uma utopia traz consigo as delícias e insegurança de tentar ser o que se quer.

E é nascida dessas intenções cheias de boa vontade que ressurge a série de postagens de alpargatas. O caminho escolhido aparece como o mais sinuoso: as saudades se acumulam, sem possibilidade de tradução, e estar completamente só em outros lados é um aprendizado um tanto quanto ingrato. O final, como já se sabe, é incerto. Mas, que seja! Já que o que se leva desta vida são os processos, não os desfechos.

Avante! 

  

05 de novembro de 2013, La Plata

La vida en el hostal

Talvez o clichê mais certo de todos os tempos é o que defende, com unhas e dentes, que a vida é uma grande viagem, dessas com estações de chegada, passageiros, paisagens na janela e conversas no caminho. Desde pequenos, estamos acostumados com a mortalidade das coisas, das pessoas e, sobretudo, dos momentos. O amiguinho que trocou de escola, o vizinho que mudou de cidade, a primeira professora que, no ano que vem, não estará mais na nossa turma, o cachorrinho que morreu, o primeiro namorado que ficou pra trás, os pais que moram na nossa cidade enquanto fomos estudar em outro estado (ou outro país)...

Em todos os momentos da vida, nos acostumamos a nos despedir. No entanto, nem os poemas do Drummond, as músicas do Milton cantadas pela Maria Rita, nem as novelas das seis nos fazem aprender tão rápido essa lição quanto viver em um hostal.  

15 pessoas numa mesma casa, compartindo os dias, os sorrisos e as histórias. Sempre há os que estão chegando e os que estão indo embora. Nas primeiras semanas, cada vez que alguém se vai, é uma tristeza que chega. É estranho ver o quarto vazio (ainda que por uns dias), não ter mais as brincadeiras de um ou de outro, não ouvir mais o som desafinado da menina que tocava violino. Da mesma forma, sempre que chega alguém, nesse início, a casa muda de jeito. É difícil acostumar a ver novas caras no corredor, novos jeitos, novos países passeando pela casa. Mas, como tudo, isso passa.

Depois de um tempo, despedir de uns e dar boas vindas a outros passa a ser algo normal. Quando alguém vai embora, não demora muito (ou nada) pra que todos se acostumem. Quando alguém novo chega, nos perdemos entre as novidades e ansiedade que esse alguém traz consigo e esquecemos como era antes, com as antigas pessoas.

Talvez a vida num hostal nos torne um pouco insensíveis. Ou fortes. Aprendemos a conviver com as diferenças e a nos despedir. Num hostal, sabemos que nada – ou quase nada – vai durar muito. Todos estão ali de passagem, uns por seis meses, outros por 3 anos, todos sabemos que, depois de ir embora, é muito provável que nunca mais voltemos a encontrar essas pessoas que se tornaram amigos.

Se é pra falar de clichês, desses cheios de razão, trocaria o trem e as estações e me arriscaria dizer que a vida, na verdade, é um grande hostal. 


27 de outubro de 2013, La Plata

iQué rico!

Lindo, feio, rico, pobre… Qualquer criança com pouco menos de sei lá quantos anos conhece essas palavras e sabe como utilizá-las (e muito!) no seu dia-a-dia. Se alguém tem boa aparência, é lindo, oras. Caso não, é como disse o Vinicius: que me perdoem as feias, mas... Rico é aquele cara que tem muito dim-dim guardado no bolso: a minoria famosa do Brasil, sabe? E pobre pode ser pobre porque não tem grana ou porque tem a mente vazia. Pobre de espírito-de-porco.

O espanhol (pelo menos o bonito, latinoamericano) usa e abusa dos nossos adjetivos cheiiiinhos de português. No entanto, aqui na Argentina, TUDO é lindo. E, não, não estou sendo puxa-saco desse país azul e branco. O que acontece é que, pros lados de cá, a palavra “lindo(a)” é usada pra tudo: gente, coisa, país, clima, festa. “Que passe lindo”, dizem, pouco menos sorridentes que os brasileiros, desejando um bom dia.

Já a comida nunca é gostosa (não, não estou com saudade do feijão... já explico). Quando sentem aquele cheirinho bom vindo da cozinha e se deparam com um prato desses de dar água na boca, os argentinos-colombianos-mexicanos soltam logo um: que rico! Ao contrário, quando o prato não saiu como o esperado, eles dizem que ficou feio. Sim. Por aqui, as comidas podem ser ricas ou feias.



Pobre? Bom, pobre é pobre mesmo, em qualquer cantinho latino-americano, com ou sem português.



10 de outubro de 2013, La Plata

Por força deste destino, um tango argentino...

Nunca gostei muito de música estrangeira. Gosto mesmo é de ouvir música em português, com sotaques e encantos nacionais. Não posso notar a diferença entre uma banda de rock ou outra e não tenho ideia de qual cantora da moda americana está por trás dos “oh yea’s” e “baby’s”. Nem vergonha, nem orgulho: o que acontece é que essas músicas não me despertam nada... é como ouvir um silêncio musical. E incômodo.

No entanto, a música latina sempre me chamou a atenção. O ritmo quente e o drama, muitas vezes excessivo, por trás das letras, fazem com que elas tenham mais alma, mais verdade. A música latina chega até mim como um grito, uma forma de colocar pra fora verdades que estavam presas na garganta.

Na Argentina, escutei canções que jamais teria conhecido no Brasil (pela resistência em conhecer o que é de fora): o tango do Gardel, Mercedes Sosa (La negra) e sua nueva canción, Leon Gieco e seu canto por Romina, Arbolito, Yupanqui... conheci as cúmbias-boas-de-dançar, o samba argentino e a chacarêra...

Roupas coloridas, esse olhar forte e o espanhol, encantador que é: música boa de se ouvir. Hoje, aprendi: Hay que escuchar, hay que conocer… 

http://www.youtube.com/watch?v=krEMw8E5ZAg 


1 de outubro de 2013, La Plata

‘Eta, vida besta, meu Deus!’

‘Um homem vai devagar, um cachorro vai devagar, um burro vai devagar, devagar... as janelas olham’. Interior de Minas é assim mesmo, como contou Drummond. A gente se acostuma a andar sem pressa, a reparar o céu, a sentar na praça pruma prosa boa. Acostuma a pensar que o mundo tem corrido demais e sentido de menos. A gente se acostuma.

La Plata, parte da província de Buenos Aires, tem um ritmo pra lá de mineiro. Não tem montanhas ou ruas de pedra sabão, é verdade. E também não tem cheirinho de pão de queijo ou “uai’s” entre uma palavra e outra, mas tem um jeito aconchegante de viver os dias. Parece que os platenses sempre podem esperar mais um pouco. O que não pode esperar é o mate na praça quando faz sol ou um passeio com o cachorro quando o céu aparece naquele azul celeste celestial do Caetano...

Passei cinco meses sem notar estranheza nenhuma nesse ritmo meio molengo de La Plata. Na realidade, nunca havia me dado conta que, por aqui, o relógio corre menos ligeiro. Até que, um dia, conversando com outros estrangeiros, o assunto entrou em pauta e eu percebi que, sim, é verdade: a vida por aqui acontece de outra forma. As festas começam tarde, lá pelas 3h da matina. Antes (e o melhor, creio) vem a prévia, regada a Fernet, coca e papo bom. O dia também não começa muito cedo, e, nas lojas, em maioria, o atendimento é tão personalizado que saímos amigos-de-infância de quem nos atendeu. Os sorvetes são gigantes e as praças (sempre elas!) sempre estão cheias...



Para os mexicanos e colombianos que vivem comigo, tudo é estranho. A vagareza do cotidiano platense chega a fazer barulho nas suas cabeças estrangeiras. “Como pode uma cidade correr tão pouco?”. Eu, Minas Gerais que sou, me senti em casa entre pessoas que fazem piquenique às segundas-feiras e veem a vida passar de um jeito mais sábio. Afinal, esse troço de correr demais desperdiça toda a paisagem no caminho...


28 de setembro de 2013, La Plata

Quem quer ser um militante?

Entre os significados para a palavra militante que circulam por aí, o mais recorrente é o de alguém que age de acordo com determinada ideologia ou/e que está envolvido ativamente em uma causa específica. Pois bem, no mundo osso-e-carne, longe dos dicionários e da internet que tudo sabe, eu só escutava a palavra militante quando o assunto era a ditadura brasileira, lá nos tempos do Pasquim.

Desde abril, quando cheguei à Argentina, um bombardeio de “militantes” disso ou daquilo veio até mim. Na faculdade de jornalismo – onde estão os militantes mirins, desconfio –, eles estão agrupados em mesas, expondo suas crenças em grandes cartazes pintados à mão. As pichações nos muros e ruas, que já ganharam espaços e mais espaços por aqui, refletem o sentimento quase comum de militar por alguma coisa. Em sala de aula, durante um seminário sobre Direitos Humanos, todos se dizem (e, de fato, são) militantes. E creem. E agem.

Acordar de madrugada e, antes de ir ao trabalho, cozinhar para pessoas que perderam suas casas por algum motivo, dedicar os sábados para ajudar imigrantes a entender o processo burocrático para se legalizar no país, passar as tardes de domingo ajudando crianças que vivem em bairros mais carentes a fazer o dever de casa...  Por aqui, isso não é bom mocismo ou altruísmo, apenas. Por aqui, isso é o normal.

Aprender o espanhol, conhecer outra cultura, morar sozinha e ser adulta... Mais que tudo isso, a Argentina tem me ensinado que esse negócio teimoso de apostar nas pequenas ações não é privilégio dos sonhadores. Mais que tudo isso, a Argentina me ensinou a acreditar. Ainda mais. 




2 de setembro de 2013, La Plata


Que nem feijão com arroz

Aos que se lembraram da música da Legião Urbana e pensaram que esse relato é uma história de amor, digo: vocês estão mais que certos, aliás, certíssimos. Essa postagem é um caso de amor: um caso de amor entre uma brasileira e o feijão carioquinha.

Não se pode viajar com grãos, flores, plantas, sementes ou coisas do tipo em aviões, mas o amor materno, corajoso que é, desobedeceu às regras e colocou não um, mas dois pacotes de feijão carioquinha na mala e trouxe aqui, em solos argentinos. Pois bem. Desde então, todo dia é dia de feijão, como se fosse Minas Gerais.

Um arroz branquinho, um bifinho acebolado, um pouco de alface pra colorir o prato... e feijão! Arroz com feijão, assim, purinho, que é pra matar a saudade. Um caldo de feijão, que combina bem com esse friozinho de menos um grau. Feijão tropeiro, sem couve, mas quase lá. Feijão. Feijão. Feijão. De segunda a sábado. Domingo não, como se fosse Minas Gerais. Cheirinho bom na panela e olhares tortos dos não-brasileiros que moram por aqui:

- “Mas você come feijão todo dia?”
- “No Brasil, se come esse tanto de feijão?”
- “Ninguém enjoa de feijão, não?”

Sempre ouvi falar que o Brasil é o país do arroz com feijão: nas propagandas do governo (dessas que mostram crianças merendando na escola), na música “Lava uma mão, lava a outra”, do Castelo Rá-tim-bum, nos pratos executivos, no bandejão (sempre tem arroz e feijão, num é?). No entanto, isso estava tão normal, tão óbvio, que nunca desconfiei de que no resto do mundo não é assim.

Por aqui, as lentilhas (que eu só via nas mandingas de virada do ano) ganham dos tais porotos e não é tão fácil encontrar feijão nos supermercados. Quando estão por lá, vêm em um pacotinho de um quilo, o que não é (quase) nada.

O feijão é mais um detalhe, desses bestas, que existem apenas pra lembrar que o Brasil está longe e que há outras histórias tão lindas quanto a de Eduardo e Mônica.   


8 de agosto de 2013, La Plata


Mate. (ou morra!)

Impossível ir embora sem escrever sobre o mate argentino. Mais que um aspecto cultural, mais que um “café” da manhã, mais que um preparado de erva, açúcar e água quente, o mate é a essência do argentino. Uma metáfora de qualquer (ou da minha) viagem ao país do peronismo.  

A primeira impressão não é das melhores: um troço amargo, quente, verde, que enfiamos guela abaixo para começar o dia (e por livre e espontânea vontade!). Estranhíssimo. No princípio, achei meio nojento (um asco, como dizem por aqui), ver cinco ou seis pessoas dividindo a mesma bombicha/bombilla (que eu chamava de “canudinho de metal”) para tomar o tal mate. Sempre que podia, recusava fazer parte dessa tradição, depois aprendi que é um desrespeito negar o mate (mate ou morra!) e passei a aceitar, com gosto, o chá e a bombicha compartidos.

Há uma função social no mate argentino. Desconfio que há estudiosos por aí que fizeram teses sobre isso... Mate é um sinônimo de igualdade e fraternidade entre as pessoas, que ficam ali, durante horas, tomando o mesmo chá e falando sobre a vida.

Se é pra reunir os amigos e falar dos problemas, mate!
Se a intenção é falar besteira e coisa boa à toa, mate também!
Para conhecer uma casa nova, um mate de boas vindas!
Pra se despedir de um amigo, bora esquentar a água e preparar a erva (ainda acho estranho isso de “erva” pra cá e pra lá, na verdade...)!

Café é bom. Tem cheirinho de casa e de colo de mãe. Café me faz lembrar os sábados de manhã, o estágio na prefeitura, roça e alegria. Mate é (quase) bom. Tem cheirinho de boa companhia. Mate me faz ver que estou longe de casa, mas me lembra a praça em dia de domingo. Mate tem cheiro e gosto de novidade. E, como tal, assusta



Julho de 2013, La Plata

Ai, marica! Ai, Colômbia!

Segundo Cremilda Medina, uma história carrega seu país dentro dela. E, já que as histórias são construídas pelos seus personagens, arrisco a dizer que é possível conhecer lugares através das pessoas. Estou na Argentina, mas moro com uma dúzia de colombianos desde que cheguei aqui, há quatro meses. Por isso, parece que já dei umas voltas por Bogotá, gastando pesos colombianos, de cifras extensas e valor baixo.

O espanhol colombiano é bastante diferente do argentino (e do argentino platense, claro). O charmoso “vós” dos argentinos não tem muito espaço por lá: conjugam os verbos como os nossos sulistas, usando e abusando do “tu”, “ti”, “contigo”... Menos elegante, mas mais fácil de aprender a falar. Entre todas as palavras, a que mais escuto (e escuto quase 24h por dia) é o danado do “ai, marica!”. Tratam uns aos outros assim, como, no Brasil, seriam os “cara”, “mano”, “véi” e expressões do tipo. “Marica, vamos sair?”, “Ai, Marica, não sei o que fazer!’, ou, o mais comum, “Marica, que fome!”.

Os colombianos são muito regionalistas (mas muito mesmo!): não basta amar a Colômbia por inteiro, idolatram o lugar onde nasceram e cresceram. Não entendo muito, mas imagino que a rivalidade entre Mariana e Ouro Preto (pra ser regionalista também) é NADA quando perto do que se passa por lá. São alegres, curiosíssimos e amigos. Perguntam a todo o tempo se está tudo bem, como foi o dia e como está a vida. Às vezes isso é bom. Às vezes.

Nunca fui à Colômbia e confesso que não sabia nada de lá antes de vir pra Argentina. No entanto, tenho pra mim que a cultura colombiana (que é riquíssima!) é muito diferente da brasileira... A música também é boa (conheço as mais sofridas, meio dor de amor, sabe como?), a rúmbia é animada e o batuque é bem dos bons. Conheço nada ou quase nada da política colombiana, talvez por falta de interesse (tão contrária à minha futura profissão), e sei que, por lá, tem um carnaval de rua muito bom.  

Entre maricas, aretas, ‘como estás’ e ‘me regalas’, compreendi que Colômbia é muito mais que Shakira. Quero conhecer (mais) desse país.

Ou não.  

Junho de 2013, La Plata

Sou taxista, tô na rua, tô na pista...

Roberto Carlos escreveu uma penca de músicas sobre os taxistas, esses que estão na rua, na pista, no asfalto... Segundo o rei do iê-iê-iê brasileiro, os taxistas falam sobre o tempo, dão notícia sobre quem morreu e quem nasceu, perguntam para onde o passageiro vai e a que veio. Muito bem. Isso funciona no Brasil. Entramos num taxi qualquer e, em dois minutos, sabemos se vai chover ou compartilhamos a sensação térmica do dia. “Que calor está fazendo hoje, heim, amigo?”.

Na Argentina é diferente: andar de táxi, nas bandas de cá, é quase o mesmo que ler uma coluna de jornal ou assistir a um debate político na televisão ou universidade. É incrível: com menos de um minuto, o assunto da vez já se transformou em política. Dizem que a Cristina anda de mal a pior. Essa é a regra entre os taxistas. Desconfiam do seu sorriso bonito (ou não), dos seus passeios de bicicleta sobre as ruas planas de Buenos Aires, do seu asco pela corrupção. Os taxistas argentinos são quase mineiros, de tão desconfiados do mundo e de todos.

Em outras – e não raras – vezes, os taxistas gostam de comparar o Brasil e a Argentina. Quando percebem o sotaque na hora de falar o endereço, já perguntam sobre a Dilma: “ela é isso tudo que dizem?” e comentam sobre as mudanças sociais no Brasil (que, aqui, parecem ser mais famosas que em solos verdeamarelindos). Para os argentinos (os taxistas), parece inacreditável que um país de extensões continentais tenha tido tantas mudanças no seu quadro social nos últimos dez anos. Parece inacreditável.

Os taxistas daqui não escutam música. Ficam o tempo todo com aquele radinho insuportável avisando onde há passageiros à espera de um carro e uma prosa política. Eles amam o Maradona, argentinos que são, e desconfiam do bom-mocismo do Pelé (quem não?).

Andar de táxi na Argentina é muito mais barato que no Brasil (se estamos falando de Buenos Aires e Minas Gerais). No entanto, por aqui, quem dirige os carros brancos e verdes tem vontade de compartir ideias e ideais, ainda que por pouco mais de cinco minutos. Por isso tudo, valem as platas, a prosa e os sorrisos de “que a Argentina te trate bem!”. E (quase) sempre trata. 


16 de maio de 2013, La Plata

Porque o espírito pracêro é universal...

Não sei se é a praça, o domingo ou o sorriso. Fato é que, sempre, nas praças daqui ou de lá, me aparece alguém querendo contar uma história, em geral, a sua história. Uma senhora que se mudou da sua cidade natal pra tentar, por azar, a sorte em outro lugar. Um menino que, desde novo, aprendeu a fazer pipoca e vende essas delícias de cheiro bom pra quem quer que seja. Um homem que conheceu metade do país de bicicleta. Um desenhista. Uma cozinheira. Um sonhador e um pé-no-chão. A praça, como a rua do João do Rio, tem alma.

Uma conversa em espanhol exige mais atenção. Pelo ‘olhar no olhos’, reparei em cada curva que o senhor de cabelos brancos e 70 e muitos anos trazia no rosto. Me puxou pelo braço, elogiou a câmera, perguntou se trabalho em algum jornal. Disse que tenho cara de gente esperta e nem desconfiou que não sou daqui, marinheiro só...

– Sabe o que é mais importante nessa vida? – Perguntou, obviamente, em espanhol. Fiz que não com a cabeça, economizando uma tradução.

– O amor. Mas não só o amor pelas pessoas, por um namorado (disse pareja), por sua profissão. O amor mais importante de todos é o amor pela vida. Se alguém esquecer desse amor – o pela vida – não tem nada mais valioso pra perder... Eu sou jovem. Quantos anos você pensa que tenho?

– 35. Uma risada boa, argentinobrasileira.

– Um pouco mais... ­– Disse, numa gargalhada engasgada. – Mas sou jovem e quero ser assim sempre. E penso que serei... porque, se tem uma coisa que eu gosto, é a vida. De viver e dançar! Não se esqueça disso, está bem? Que o importante é gostar da vida. ­ – Repetiu, num espanhol complicado.

Não me esqueci e não me esquecerei. Mais uma história, entre as muitas que me aparecem e que conto em um livro que está pra nascer algum dia. No Brasil, Argentina, Itália e onde ainda desconheço: praça é praça. Basta ter ouvidos, sorrir largo que elas chegam. As histórias. 



13 de maio de 2013, La Plata

Garçom, tem um nacionalismo no meu prato!

Nunca fui muito fã do Pelé (que me perdoem os fanáticos, como o meu pai), mas essa história de rei disso e daquilo não funciona comigo, a não ser quando o assunto é o Robertão, da música.  Sempre fui mais Romário-baixinho, com aquela cara marrenta de quem um dia se tornaria político. Também era Tafarel (vai que é sua, Tafareeeeeeel!), Bebeto e, anos depois, Cafu e Ronaldinhos. Copa do mundo, bandeira na mão e “eu sei que vou, vou do jeito que eu sei, de gol em gol, com direito a replay” que não acabava mais!

Chegando na Argentina, entre quadros de homenagem ao Maradona e “deuses Diego”, um amor pelo Pelé brotou como um relâmpago, crescendo rápido e fundo no coraçãozinho verde e amarelo. De repente, aos 23, sou fã do Pelé desde criancinha... e ai de quem ousar dizer que o danado do Maradona é melhor que o Arantes. Nunca vi nenhum dos dois jogando (pai, não me olha com essa cara, uai!), mas tenho certeza que ninguém supera o Pelé, pelo simples (aliás, complexo) fato de se tratar de um brasileiro gente-como-eu.

Na lista do mediaplayer no meu computador, estão cinco (C-I-N-C-O) músicas internacionais (3 Beatles e 2 Piaf), todo o resto (600 faixas ou algo assim..) são músicas brasileiras, do nordeste, de Minas (muitas), do sul... Bergman é meu diretor preferido. Também não dispenso um Almodóvar, um Hitch ou Woody. Mas, quando aparece o símbolo da Petrobrás na lista de patrocinadores antes do filme começar ou quando o Selton Mello vem com aquele jeitinho brasileiro contar uma história de palhaços, dou um suspiro a mais e a TV fica mais convidativa. Brasil na tela, sacomé-que-é?

Dizem que sou ufanista, desde sempre e antes. Dizem também, desde Hitler, que ufanismo pode ser mais negativo que positivo. Enfim... Não entendo muito de nacionalismo (apesar das aulas do segundo período), só sei que acho o Brasil o que há de melhor e, por mim, todos os brasileiros seriam verde-amarelos roxos. Hoje, longe, sem feijão, pão-de-queijo, roda de violão na praça, jornal em português e ‘bom dias’ que entendo de primeira, o Brasil fica pequenininho... o ruim é que está longe, o bom é que, pequeno, cabe no meu bolso e no meu abraço.

Pra não perder a crítica, termino com Drummond:
Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!

Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,

ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.

O Brasil não nos quer! Está farto de nós!

Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.

Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?


 5 de maio de 2013, La Plata

Onde (não) se comem palomitas...

Espanhol é um trem danado, principalmente pra quem fala um mineirês de raiz. São muitos acentos – ou, no Brasil, muito sotaque – para uma língua só. Eis que, de repente, aqui na Argentina, esquisito passa a ser algo bom, sunga passa a ser ofensa, cachorros são filhotes e borracha é muito mais divertido (por que não?) que aquele objeto para apagar o lápis. Junto às novidades, estão as vergonhas e os micos-gorilas que acompanham os estrangeiros desse mundão.

Aprendi que palomas são pombas (saudade, praças e bandeijões!) e que palomitas são pombinhas... Pois bem. Uma ida à carniceria (nossos açougues de transportes duvidosos) e, no rosto, a expressão de um Brasil assustadíssimo: no quadro de preços, lá estavam elas, as palomitas. “Meu Deus, se comem pombas na Argentina!!!”. Agradeci à carne moída, certa de que, no meio, estavam as pobres pombinhas para o meu jantar. Uma tarde inteira de susto, até que vem a descoberta: palomitas nada mais são que uma parte do boi... idale!

Brasileiros são metidos a simpáticos (não é uma regra, mas não sou a exceção). 10 minutos de atraso para uma clase (aulas, a parte difícil da viagem) e uma vontade de puxar papo com o colega do lado: “corri tanto e me atrasei”, disse, em espanhol num sorrisão verde e amarelo. Amarelo? Amarelo foi o sorriso que o argentino me deu... Mais tarde, descubro que correr, por aqui, pode ser “fazer sexo”. Bem. Preciso dizer que falei besteira? Universal.


Hambre é fome. Hombre é homem. Já perdi as contas de quantas vezes disse que estou com homem porque ainda não almocei e que fulano é uma fome bonita. Novio é namorado. Nuevo (nueBo) é novo. Também são incontáveis os dias em que eu disse que o meu curso no Brasil é namorado... Salve, salve, comunicação! 

26 de abril de 2013, La Plata

Jornalismo: Arquiteto ou Pedreiro?

A Wikipédia, mãe-dos-burros moderna, classifica como arquiteto aquele indivíduo que planeja e desenha espaços. Aos arquitetos, cabe uma função brilhantemente solitária: a parte intelectual da construção do mundo. Eles enquadram todas as geografias numa folha em branco, entre réguas, cálculos, certezas e suposições.

Por outro lado, existem os pedreiros. Pela mãe Wikipédia, esses profissionais fazem parte do processo operário: o velho e bom colocar a mão na massa. Os pedreiros são os sujeitos capazes de dar vida ao que, antes, era só planejamento. Realistas, como devem ser. Aos pedreiros, cabe uma função brilhantemente solidária: vestir, de tijolos, os lares de quem quer que seja, como na história dos três porquinhos.

Conheci um jornalismo arquiteto, que me dita, todos os dias, que devemos (profissionais que somos) traduzir os fatos, entre leads, pirâmides, grides e verbos. Esse jornalismo fica sentadinho em frente a um computador planejando a melhor forma de dizer o que os outros vivem. Às vezes, o danado nem vai tão longe e fica pra sempre onde nasceu (sim, é verdade): numa sala confortável de uma universidade. Está lá, palpitando, criticando, julgando... Com razão ou não. A esse jornalismo de colarinho, cabe a nobre função de causar indignação – nos outros.

Pois bem. Como tudo (ou quase), existe outro tipo de jornalismo: o pedreiro, proletário, vivo, que sua a testa e vive junto com os personagens que preenchem suas histórias. Esse vai além das janelas e estantes: a indignação que o move não está nos outros, mas em cada texto, foto, spott ou cenário que compõe. Esse jornalismo tijolo por tijolo está no mesmo patamar que todas as pessoas desse mundão: é gente como a gente, com toda a beleza e as falhas que a palavra – e os gestos – trazem consigo.

Na Argentina, conheci uma universidade pedreira: que coloca os pés no chão, intervém no que acontece no país e entende a importância que as instituições – em especial, as de jornalismo – têm na vida dos jovens que todos os dias saem de casa à procura de novos olhares. Pelos corredores, os estudantes exibem suas opiniões, chamam os companheiros (sim, companheiros) para algum trabalho social, produzem e influenciam no conhecimento construído.

Não é que eu nunca tinha visto universidades assim em terras brasileiras... Porque vi e vivi. Mas, por aqui, a timidez do movimento estudantil é bem menor. Reagem. 


21 de abril de 2013, La Plata

Não pise na grama!

Nada combina mais com domingo que uma boa praça: nem o programa do Sílvio ou a missa das seis. Praça é coisa boa: tem banco, cachorro, pipoca, gente que vai e vem, pressas, saudades, mochilas e sorrisos... Se tem algo que os argentinos sabem fazer, é curtir uma boa praça. Eles levam seus panos listrados pro piquenique, uma garrafa térmica pro mate, um violão pra alegrar o dia e ficam lá, durante toda a tarde, praceando.

Domingo também combina com saudade: do silêncio da minha rua em Minas Gerais, do barulho do arroz na panela que só a minha mãe samba, dos latidos dos cachorros quando a caminhonete do meu pai apita... Por isso, juntei dois e dois – num quatro arretado – e passei o domingo na praça.

Num canto, casais de velhinhos dançando o samba de cá (sim, samba): com seus lenços e uma ginga de dar inveja em qualquer brasileiro pé de valsa. No outro lado, dois malabaristas voando pelo céu arrancam sorrisos de todo mundo com suas piadas (até de mim, que não entendi tanto assim do espanhol rapidíssimo). E, no meio de tudo isso, uma feira de miçangas, couro, dreads e muita riponguice. Pura paz!

Por aqui, mesmo sem chinelos, as pessoas deitam no chão, numa simplicidade que chega a dar inveja. Parece que esquecem tudo – os problemas e as revoltas – e ficam ali, horas a fio, colocando o papo em dia, vendo o tempo passar como a Banda, do Chico.

A regra é a mesma na América Latina: não pise na grama. Mas, aqui, a interpretação é tão doce quanto a pipoca que vendem no carrinho. Não pise na grama: deite na grama, ande na grama, toque violão na grama, leia na grama... Se Drummond visse isso, bem diria: êta, vida beeeesta (e danada de boa!), meu Deus!



19 de abril de 2013, La Plata

Em terra de Mafalda, quem tem Henfil...

A Mafalda, do Quino, surgiu como uma propaganda de eletrodomésticos. No início dos anos sessenta, a menina dos cabelos rebeldes nasceu para divulgar a marca Mansfield. A campanha publicitária não foi pra frente, mas, a partir daí, os quadrinhos ganharam as páginas de importantes periódicos argentinos e ficaram conhecidos mundialmente.

Hoje, pelas ruas argentinas, Mafalda e companhia estão por todos os cantos: nas mochilas, cadernos, adesivos e desenhos pelas paredes. Nas livrarias, os quadrinhos ficam expostos: imortais. Por aqui, parecem entender a importância que as mensagens gráficas tiveram em tempos de censura militar, quando enquadravam – literalmente – os problemas que ficavam encobertos pelo regime. Os argentinos têm orgulho da Mafalda e, me arrisco a dizer, todos (ou quase) sabem quem é o Quino, nem que seja de nome.

O Brasil também teve seu regime militar e, em contrapartida, seus gênios rebeldes que lutaram contra esse sistema e seus horrores. Nessa época, assim como na Argentina, os desenhos foram um instrumento de combate, uma forma de denúncia e fuga à censura. Mas, ao contrário dos hermanos politizados, são pouquíssimos os brasileiros que conhecem essa história em quadrinhos.

No meu mundo ideal, as papelarias brasileiras também trariam nas capas, os desenhos do Laerte, do Jaguar e do Henfil. As pessoas saberiam que o quadrinho nacional é muito mais que a Turma da Mônica e nenhum estudante de jornalismo perguntaria se o Henfil era alemão...

Os desenhos de Quino têm uma importância incontestável: inspiraram e inspiram pesquisas por todo o mundo, fizeram parte de campanhas a favor dos direitos da criança, causam reflexão e admiração por onde passam. No entanto, o Brasil também tem suas Mafaldas tão – ou mais – geniais que as argentinas. Nacionalista que sou, não troco uma boa história da caatinga, com gente como a gente, que fala de farinha e política entre um “uai” e outro, por nenhuma outra historieta. 

No Brasil, os cartunistas, em maioria, eram movidos por uma ideologia severa, quente, urgente... os personagens brasileiros não nasceram para propagar coisas, mas para tornar pública a informação.

Que me perdoem os fãs da Mafalda, mas meu quadrinho não é de exportação.



18 de abril de 2013, La Plata

Havaianas: (nem) todo mundo usa

Sapato de salto. All Star. Sandália Arezzo. Alpargatas. Conga. Sapatilha. Mocacin. Há tipos de calçados para todos os passos, gostos e personalidades...  Mas nenhum deles se compara a um bom (e velho) par de chinelos, que nos serve na hora da pressa e, fiel, espera o dono debaixo da cama enquanto ele descansa de um dia longo e pé preso. Todo mundo usa chinelos: do jardineiro ao professor, do presidente ao estudante, da criança ao vovô... Os chinelos são símbolos de uma democracia tão plena que nem a República de Platão imaginou. Danados que são, transformam todos os pés na mesma coisa: um conjunto de cinco dedos, combinados de um jeito estranho, que servem para andar, chutar e crescer unhas.

Pois bem. Em uma semana de Argentina, não vi ninguém – ninguém mesmo – calçando chinelos nas ruas. Nem nas praças de gramas, no bosque ou no caminho da padaria. Por aqui, quando saem de casa, os pés estão sempre presos, encobertos por couro, tecido, plástico ou o que quer que seja... Os pés argentinos não conhecem o mundo, não veem as folhas que caem bonitas enfeitando a calçada. Calçados. Todo o tempo.

Os meus pés, brasileiros rebeldes que são, queriam porque queriam conhecer o que estava escondido para além dos tênis. Hoje, cachecol no pescoço, mochila (sempre ela!) nas costas, um jeans arrumadinho e – paran – um par de chinelos compuseram meu look do dia. Andaram 30 quadras, pra lá e pra cá, satisfeitíssimos. Entraram no banco, fizeram a tarjeta do autobus, compraram um ou dois alfajores e causaram espanto. Muito espanto. As pessoas olharam meio torto, desconfiadas dos meus pés à mostra. Como alguém corta metade da cidade com os pés de fora? Topless de pés: quase um absurdo.

Veríssimo, um dia, disse que liberdade é não ter medo do ridículo. Pois bem. Por aqui, do ladinho do Brasil sul-americano, liberdade é ter a coragem de tirar os sapatos e pisar no chão, pra poder voar. 





12 de abril de 2013, La Plata

¿ Soy loco por ti, América?

Nos muros das ruas (sempre eles), as mensagens gritam pela América Latina. Nas livrarias, os livros falam de América Latina. Nas disciplinas de periodismo, as ementas trazem a América Latina em praticamente tudo que é oferecido aos alunos. Nos menus, os pratos têm nomes de países da América Latina. América Latina, América Latina, América Latina: repetem quantas vezes forem (e são) necessárias.

A Argentina nunca está sozinha, embora forte. Por aqui, pensam coletivo, entendem que o mundo não é mais como antes e que só os cegos não percebem a expressividade crescente dos países latinoamericanos nos últimos anos. Ora, se sobrou até para o Papa!

Tão importante quanto entender que os centrismos de um poder hegemônico mundial estão ficando para trás é não esquecer as memórias e as pessoas que contribuíram, mano a mano, para que isso acontecesse – ou não. Nas pichações, entre um “Evita vive” e outro, há, ainda, mensagens de “Fora Condor” e fora U.S.A (por que não EUA?).

Entre os países que compõem a América Latina, está o Brasil, todo lindão pintadinho de verde e amarelo. Mas, ora, a América Latina compõe o Brasil? Escutamos música francesa porque faz bem aos ouvidos. Aprendemos um inglês cheio de “oh yeah’s” desde pequenos. Nas aulas de história que ensinam nos colégios, aprendemos direitinho as guerras, fomes e pestes negras que assolaram outros povos, mas formamos sem conhecer as luchas e conquistas do nosso próprio chão-continente.

Evitamos Evita, lemos um Neruda mal lido, trocamos o “Duerme Negrito” do Jara por Gagas e Beyonces, deixamos o Drummond descansando sozinho em Itabira... “É a globalização”. De fato. No entanto, esse globo, às vezes, está incompleto, restrito em uma geografia seletiva e torta. Podemos conhecer o mundo todo, por que não? Mas desconhecemos.

Enquanto isso, Calle 13 toca seu ufanismo:
Vamos caminando
Aquí se respira lucha
Vamos caminando
Yo canto porque se escucha
Vamos dibujando el camino
(Vozes de um só coração)
Vamos caminando
Aquí estamos de pie
Que viva la américa!

E, no Brasil do Caetano, somos loucos por ti, América?



11 de abril, La Plata

Cucarachas

Em um desses dias mais súbitos que belos, o Henfil decidiu levar o pessoal dos quadrinhos para os Estados Unidos. Os motivos foram muitos (hemofilia, inquietação, urgência e outros tantos). Segundo ele, longe de casa, perto dos filhos (ou sobrinhos?) do Tio Sam, somos todos cucarachas.

Há dias em que acordamos mesmo assim: um tanto quanto cucarachas. Cucarachas, as baratas, são seres teimosos. Frequentam lugares diversos, com aquela pose que só elas têm. Não importam quantos chinelos velhos tentam acertá-las entre uma quina e outra: estão sempre num cantinho, vendo a vida passar com seu tempo implacável.

Longe de casa – e das Donas Marias, como a mãe do Henfil – é preciso ser meio cucaracha: ficar num cantinho, entre os chinelos alheios, e saber a hora de aparecer.

Hoje, vi um Brasil na TV, como no Chico. E vi um Brasil nas livrarias: Clarice (não a do “Bêbado e a Equilibrista”), Paulo Coelho (pois é...) e, na parte de comunicación, Denis de Moraes. Desse último, tirei uma foto e pensei “Brasiiil!”. Muitos (muitos mesmo) livros traduzem a sociedade por outro viés, mais socialista, talvez. Livros que nunca vi pelas estantes brasileiras, como nos tempos do índex. Comprei um Galeano em espanhol para passar o tempo e entender o mundo de outra forma.

Os muros aqui são todos pichados: “nací em su lucha”, “indignación” e muitas outras mensagens e imperativos. Em cada esquina (ou quase), há algo a se questionar, há uma cobrança infiltrada nas paredes. E não é diferente que começa o livro do Galeano: “¿es América Latina uma región del mundo condenada a la humillacion y a La pobreza? ¿Condenada por quién? ¿No será La desgracia um producto de la historia, hecha por lós hombres y que por lós hombres puede, por ló tanto, ser deshecha?”.

Buenas Noches, America Latina. 



9 e 10 de abril de 2013, La Plata

Bienvenidos a La Plata

Wi-fi é uifí, não uaifai. Não se diz MECdonald, ou BigMEC. Autobus é bus mesmo, nada de bãs nasal. Os estrangeirismos, na fala, são poucos. “Falta isso no Brasil”, penso. No entanto, em cada esquina, há um fast-food. Nas praças cheias de ufanismos, as pessoas tomam suas coca-colas (gaseosas), usam Adidas e escrevem no caderno com a foto do Justin Bieber, de papo-pro-á.

Os estudantes são iguais no mundo todo, imagino. Os do colegial usam saias xadrez e me lembram “Rebeldes” dublado no SBT. Os universitários, em protesto, cantam maracatus, com suas alfaias e caixas. Uma banda sobe ao palco, meio Sagarana às quintas-feiras: “arriiiiiiba, La Plata!”. Rebolam muito, pulam mais ainda. Os cantantes me lembram o Victor Jara, chileno.

Nas camisetas, está escrito Movimiento Estudiantil. O universitários recolhem donativos para os miúdos de cá, que perderam tudo que tinham (ou quase) nas chuvas de abril (nossas “águas de março” atrasadas, desconfio). Uma frase do Galeano e um pedido de indignação.

"Falta isso no Brasil", penso. Agora, sem "no entantos". 



8 de abril de 2013, Buenos Aires

Em terra: planos

Cadê as montanhas? De cima, pertinho das nuvens latino-americanas, planícies que não acabam mais: nenhum morrinho sequer, nenhuma ladeira com uma igreja em cima ou ruas tortas de gentes se apertando entre calçadas, cachorros e carros de passeio. Em terra – solos hermanos –, um jovem argentino oferece a cadeira do ônibus para um senhor: “Estou esticando minhas pernas”, responde, mineiríssimo.

Uma hora – um pouco mais – separa Buenos Aires de La Plata. No caminho, o taxista puxa conversa. Não fala sobre clima, música ou futebol. Para minha surpresa, ao saber que vim estudar periodismo, dá uma aula sobre regulamentação da mídia: há muitos monopólios e a tal “liberdade de expressão”, como no Brasil, ora é argumento, ora é censura.

Os últimos dez anos foram bons, como no Brasil (novamente). A Europa não é mais o centro do universo (há tempos). Em 2002, 7% dos ventiladores utilizados na Argentina eram de fabricação nacional. Hoje, 11 anos depois, esse número chega a quase 98%, conta Norberto, o taxista. Não chequei a informação quente (ou refrescante?), mas não é preciso apurar muito para notar que ele é Cristina, é Lula (“gritemos Lula!”, diz. E grita.).

Paradoxalmente, conta que, nesses tais últimos anos de “boníssimo gobierno”, perdeu todas as empresas que tinha: “era empresário, mas não deu certo. Sou socialista, ando pela esquerda”. Em portunhol: contradição.

Uma foto de Evita, um cartaz de protesto (muitos, aliás), propagandas de coca-cola... As casas vão ficando menores, as paisagens mais lentas (os sotaques, não). “Bienvenidos a La Plata”: termina Buenos Aires e começa uma nova história.







4 comentários:

  1. Jamylle, quase chorei lendo seu "diário de bordo". é legal esse choque cultural de recém chegado (não que depois de já chegado a gente não se surpreenda). pensei e observei muitas das coisas que você disse...para a eleição do CAHIS nem dava corum no ichs. na UNLP vários grupos estudantis disputam, de certa forma, para ver quem contribui mais para uma educação de qualidade.

    aproveite essa La Plata que me dá tanta saudade. já já o outono dá seus sinais.

    Ps. como que tá a cidade com a questão das chuvas?

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    1. Que bom saber que você está acompanhando o blog, Bárbara!
      Estou boquiaberta com o engajamento do pessoal daqui, viu?
      Das chuvas: agora está tudo mais tranquilo, mas há pessoas que ainda estão sem casa/roupas/água...
      Bom, não deixe de vir aqui matar a saudade de La Plata pelas postagens, viu?

      Besos!

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  2. Olha, quando você ver o pessoal aí de chinelos você vai dar risada. Porque eles tem um similar as nossas Havaianas. O chinelo deles chama, pasme, HaWaianas haha

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    1. HAHAHAHAHAHAHAHA. "HaWaianas"????? Olha, quando eu encontrar com um par desses, vou pedir uma foto.

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