domingo, 24 de fevereiro de 2013

A falta que ele faz¹


¹ Artigo publicado no caderno "Pensar", do jornal Estado de Minas, em 2 de fevereiro de 2013. 

Em tempos de Comissão da Verdade – quando o Estado brasileiro toma para si a tarefa de clarear os cantos escuros da ditadura militar –, é difícil não recordar o traço rebelado e atrevido de Henfil. O lápis e o nanquim que palpitavam em tudo: nos rumos da política e da economia, nos cenários de desigualdade, no comportamento de homens e mulheres a quem acusava dessa ou daquela atitude. Ou da falta dela. Pois em 4 de janeiro o calendário marcou 25 anos sem ele. Para as gerações que o cartunista não cutucou, não provocou ou não tirou do sério, resta uma espécie de vácuo: Henfil passou feito um cometa – quem não viu perdeu.

Henrique de Souza Filho, Henfil. 
Mineiríssimo, nasceu Henrique de Souza Filho, na cidade de Ribeirão das Neves, no mês de fevereiro. Se estivesse vivo, faria, na terça-feira, 69 anos (que certamente celebraria com uma piada obscena). Aos 20 anos, já era cartunista na Revista Alterosa. Dali saltaria para outros segmentos da imprensa, como o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports, Jornal da Tarde, Correio da Manhã, Intervalo e as revistas Isto É, Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro. Também brindou, com sua irreverência, um dos mais importantes jornais da imprensa alternativa, O Pasquim. Sem falar do cinema (com o filme Tanga, deu no New York Times) e da televisão (com o programa TV Mulher, da Rede Globo). Hemofílico, morreu em 1988, vitimado pela Aids (contraída por meio de uma transfusão de sangue), depois de brigar feroz e obcecadamente pelo fim do regime militar, da tortura, dos exílios, pela democracia, pelo voto direto, pelo fim da fome e da miséria, pela educação, pelo direito à vida – mas não a qualquer vida. Só valia a vida digna. 

Cartunista, quadrinista, escritor e jornalista, Henfil era dessas figuras que militam incansavelmente, cansando aqueles que se recusavam a pensar em liberdade. Atribuía a seu próprio desenho (e também à própria escrita) a marca de um jornalismo socialmente engajado, que se ocupava da crítica social, política e cultural. Não por mero acaso, chegou a integrar o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, como suplente, e a Associação Brasileira de Imprensa, como vogal. Nos anos 70, participou ativamente do movimento grevista dos jornalistas e, segundo o ex-presidente do sindicato da categoria em São Paulo Audálio Dantas, queria “comer o fígado” dos donos de jornais. Mais tarde, reuniria desenhistas como Laerte, Nilson, Chico Caruso, Paulo Caruso e Angeli para integrar a Oboré, a pequena empresa de comunicação criada para divulgar os movimentos de resistência ao governo e as injustiças praticadas pelo regime contra as bases operárias do ABC paulista. A partir dos quadrinhos – e sem receber por isso – o grupo de cartunistas dedicou-se à conscientização política dos operários. 

Adepto da palavra e do desenho capazes de traduzir, Henfil se empenhava para ser compreendido pelas classes populares, e não apenas pelos intelectuais. Queria provocar reflexão, indignação e, a partir daí, ação. “O humor pelo humor é sofisticação, é frescura”, bradava aos amigos, explicando que, para ser levado a sério, o humorismo deveria ser “jornalístico, engajado, quente”. E sofrido – faltou dizer. Henfil fazia rir, mas também fazia doer. Foi assim, por exemplo, quando a Graúna, personagem mais famosa da Turma da Caatinga, revelou os três mitos alimentados pelos brasileiros nas regiões castigadas pela seca: Papai Noel, cegonha e leite. Ou quando ela se gaba a outros dois personagens (o cangaceiro Zeferino e o Bode Orelana) de pertencer a um lugar como a caatinga, “a maior exportadora de crianças para o céu”. 

As histórias da caatinga tomavam o Nordeste como metáfora dos mais pobres. Nos desenhos, um outro social ganhava rosto através dos personagens e mostrava aos brasileiros a cara do analfabetismo, da mortalidade infantil, da seca e da fome. Era assim que os desenhos burlavam a censura à imprensa imposta pelo regime, denunciando problemas que acometiam grande parte dos brasileiros. Marcados por uma ironia aguçada, os traços questionavam o poder público e a reação – ou não reação – das pessoas. Cada personagem era uma frente de batalha: os fradinhos Baixim e Cumprido, inspirados nos frades dominicanos de Belo Horizonte, questionavam, num humor ácido e direto, o comportamento de uma sociedade apática, por vezes cúmplice. Estavam lá, nos diálogos entre os frades, as críticas mais ferrenhas aos preconceitos raciais e de gênero, ao poder público e seu descaso para com as classes mais pobres e, sobretudo, às contradições da Igreja Católica como instituição de fé. Sempre rebelde O traço e a palavra faziam as vezes de espada num cenário que não oferecia tréguas. 

A campanha pela anistia aos exilados políticos é outro bom exemplo. Tema recorrente nos quadrinhos e textos de Henfil, o movimento, iniciado em São Paulo, tentava fazer com que o governo militar cessasse as perseguições aos condenados por crimes políticos, acusados de manifestações e ações contra a ditadura. Nesse caso específico, a luta de Henfil sustentava-se no sentimento de solidariedade aos brasileiros perseguidos, mas sobretudo na situação do próprio irmão – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também exilado. A luta de Henfil dava, assim, contornos singulares aos sentimentos de muitas famílias separadas de entes queridos, forçados ao exílio. Famílias que, ao fim e ao cabo, só faziam representar o Brasil que sonhava com a “volta do irmão do Henfil”, como rezavam, na voz de Elis, os versos da canção O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Para o cartunista Nilson, a campanha pela anistia não teria a mesma força sem as Cartas da Mãe – aquelas que Henfil escrevia à mãe, dona Maria, e que, naquele período, eram publicadas semanalmente pela revista Isto É. Argumenta que elas davam um rosto a cada exilado. “Os 10 mil exilados, que ninguém sabia que existiam, fora os mais conscientizados, de repente tinham uma cara: era o Betinho, o filho da dona Maria”, avalia o desenhista em depoimento a Dênis de Moraes, autor da biografia do cartunista, O rebelde do traço, lançado pela editora José Olympio em 1996.

Naqueles anos, Henfil dedicou-se inteiro à campanha pela anistia. Segundo Dênis de Moraes, ele produziu desenhos para comitês de anistia, compareceu a uma série de atos públicos, fez questão de assinar manifestos pela “anistia ampla, geral e irrestrita”. Esse empenho, tão direcionado aos direitos humanos, chamou a atenção do núcleo mineiro do Comitê Brasileiro pela Anistia, que chegou a conceder ao cartunista, em abril de 1979, a Medalha Vladimir Herzog. 

Sim, é bastante provável que as histórias contadas por Henfil – pelo traço ou pelo texto – sejam calcadas em utopias, todas elas inspiradas em desejos e sonhos de cidadãos de outro tempo e lugar. Mas talvez por isso também estejam tão presentes nas ideias que deram corpo à Comissão da Verdade. Porque uma boa história não se limita à arte da narrativa. A boa história permite mudanças, possibilita novos desfechos, inaugura novos rumos. Até que se anuncie um novo tempo.

Por Hila Rodrigues e Jamylle Mol


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Travessia¹

¹ Texto publicado no jornal Lampião (curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto), em fevereiro de 2013. 

De um lado, na casa da esquina, três portas e uma janela se equilibram na parede em ruínas. Do outro, o trilho da Maria Fumaça dá a certeza de que estamos em Minas Gerais. O chão de madeira esconde a água turva que o rio leva em seu constante passeio pela cidade. Enquanto isso, de cima, uma cruz de pedra cercada de flores abençoa as tábuas largas, com uma fé colorida que parece contradizer a frieza do seu concreto. É nesse cenário que a primeira ponte de Minas Gerais repousa, no auge dos seus trezentos anos de história.

Alphonsus de Guimaraens ou Manoel Ramos, ponte de tábua ou de madeira. A diversidade de nomes só não é maior que o número de passos que já caminharam por lá: pés firmes dos bandeirantes com seus ouros falsos e sorrisos contidos, andar tranquilo das freiras em dia de missa, a criança que largou a mão da mãe para seguir a retreta da banda e o menino que equilibra os pneus da bicicleta entre um suspiro e outro. Todos eles, cada qual em um momento, atravessaram a ponte. E atravessar é fazer história, é começar em um canto e desafinar em outro. Para muitos, estar sobre essas madeiras combinadas no interior da cidade é a maior aventura que o cotidiano permite. Porque atravessar a ponte é, de fato, fazer história. Ninguém está lá apenas por estar.

Talvez o que mais se pareça com a ponte escondida no cantinho da cidade seja um jornal. Não na estrutura, para alívio dos céticos. Um é madeira, prego, ferro e concreto, combinados a fim de seguir a planta elaborada por um engenheiro ousado, a mando de um prefeito sedento por placas de inauguração. O outro é papel, palavra, tinta, imagens e um punhado de ideologia, combinados para seguir a pauta elaborada por um repórter ousado, com uma mente sedenta pela vontade de mudar o mundo.

A ponte escondida no cantinho da cidade só tem sentido se alguém passar por lá. Se não fosse por ela, o maquinista da Maria Fumaça jamais conheceria as paredes que os anos destruíram. Da mesma forma, o cachorro encostado na porta da casa invadida pelo tempo nunca saberia que o trem carrega pessoas de um lugar para outro. Um jornal escondido num cantinho da cidade só tem sentido se alguém abrir suas páginas e se render ao charme das manchetes. Se não fosse por ele, as pessoas jamais conheceriam os personagens que constroem a história. Da mesma forma, os personagens sequer imaginariam que há histórias para serem criadas.

Quem atravessa a ponte vê além do que está em uma das margens do rio. Quem lê um jornal enxerga mais longe do que o seu próprio quintal. A ponte está na rua. O jornal, para ter sentido, também deve estar. A ponte serve ao povo e, por isso, não faz distinção entre os passos descalços do morador de rua e os sapatos engraxados de quem não anda de ônibus. O jornal? Ora, o jornal também está a serviço de todos os passos, embora, às vezes, se esqueça disso e meta os pés pelas mãos. A cada dia, a ponte se renova. Ainda que sejam as mesmas madeiras e os mesmos pregos, o rio que corre lá embaixo já é outro e as pessoas que caminham são diversas. Em toda manhã, o jornal se reinventa. Embora sejam o mesmo papel e as mesmas letras, as vidas que preenchem os textos são outras e o mundo está diferente do dia anterior.

Ponte e jornal: embora estáticos, são passagem. Instrumentos que unem, eles levam, juntam, revelam. A ponte transforma o cenário de quem anda. O jornal faz com que as pessoas caminhem para alterar seus próprios cenários. Ambos são sempre um meio, não um fim.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Primeira pessoa

Não gosto de escrever em primeira pessoa. Talvez porque, sem saber, só penso em coletivo. Mas pode ser também o velho medo de dar a cara a tapa que às vezes resolve fazer uma revisita. A exceção de agora, no entanto, é necessária, já que o incômodo é singular demais para me esconder numa terceira pessoa comodista.

Falta pouco tempo para terminar a universidade. E, às vezes, me assusto com o que vejo por aí. Não sou fã de intelectualismos, desses em preto e branco que não sujam o pé, mas não consigo entender as pessoas que formam em um curso de humanas (sociais aplicadas, que seja!) sem ler nenhum livro inteiro sequer. É, no mínimo, apavorante pensar numa imprensa que desconhece seus antepassados, que não imagina o quanto o jornalismo já alterou realidades por aí... Não dá pra fugir: a prática é boa (diria: assustadoramente deliciosa), mas debruçar sobre a teoria e sobre os livros é algo que não dá pra deixar só por conta dos xerox que nos são indicados ao longo dos semestres. É difícil imaginar a perda de quem sai da universidade, em um curso de jornalismo, sem saber quem foi o Wainer, ou o Chatô, por exemplo. Não saber quem foi o Henfil então... uau! Desse, não preciso nem dizer.

Um dia, no começo de tudo (faz tempo, ai!), disseram que jornalistas devem ser chatos. Bom. Bem bom. Vamos ficar inconsolavelmente indignados com os problemas que cercam a cidade? Vamos! Que tal não deixar as grandes empresas mandarem e desmandarem no que é do povo? Ótimo. E a política, heim? Nada como ser chato ao entrevistar um desses nomes que falam bem, pro mal. O perigo é achar que esse “ser chato” é outra coisa que vai além de ser repórter (desses de verdade, sabem como?). Ser chato não significa negar tudo e todos com a veemência característica de quem ignora! Há, sim, outros chatos mais capazes do que o nosso umbigo enxerga, por que não? Há, sim, jornalistas (e muitos!) fazendo um belíssimo trabalho. Não, ninguém é melhor que o colega só porque acha que o é. Nem todo gênio é chato. Aliás, desconfio que a maioria deles passa longe disso. Quer coisa mais genial que a humildade? Desconheço.

Legal demais também é esse desejo de salvar o povo, falar do povo, escrever pro povo. Sensacional. É isso aí! Afinal, o jornalismo é feito para quem? O difícil é saber que o povo não é aquele que aparece na TV, todo juntinho quando rola uma manifestação. PASMEM: o povo é o colega de classe, é o porteiro, é o professor, é o motorista. Portanto, vamos, sim, querer fazer o melhor pro povo desse Brasil (e do mundo, por que não?), mas, antes, vamos lembrar que o povo tá ali pertinho. É assim tão difícil começar agora? Nem é. Basta fazer uma forcinha pra dar um bom dia que, com certeza, as boas intenções que rondam as monografias serão bem mais fáceis de serem aceitas no mundo carne e osso.

Jornalismo é um troço que faz pulsar, que tira o sono, que mexe com os miolos. Não sei se a gente perde esse amor todo pela profissão à medida que vai amadurecendo. Espero que não. Por agora, essas inquietações que me chegam sempre que vejo um humorista descompromissado com a verdade (a danada da verdade) se tornando um grande ídolo, a cultura nacional sendo cada vez menos conhecida por quem jura de pés juntos que quer ser repórter de um caderno especial (de cultura, óbvio) ou alguém reclamando de uma pauta “humana” demais, dá um arrepio. 

Podem dizer que não tenho nada – e absolutamente nada – a ver com isso. Mas, oras, há intromissões necessárias. Por que não?