sexta-feira, 10 de abril de 2015

Somos todos Manuel

O meu nacionalismo corre nas veias: rápido, sincero, pulsante. Hoje, ouvi no rádio um cantor negar o próprio português e então corri para o meu armário e vesti a minha capa verde amarela: aquela que escondi no último sete a um. Admirei o meu reflexo no espelho, tão made in Brazil, e corri para o mundo obedecendo à vontade de provar que não sou menos culto que um europeu. O inglês é universal, mas eu sou dono das minhas escolhas. Saí, indignado. O meu grito percorreu ruas, favelas, Planalto Central. Alçou vôo. Reuni multidões a favor da minha causa nacionalista. Lutei.

Na Câmara Federal, o projeto de lei 4330 está escrito em português. No entanto, o texto não causou em mim tanta indignação quanto a declaração daquele cantor que ouvi no rádio. E daí se esses quatro números representam um retrocesso na causa trabalhista nacional ou se o salário de 18 milhões de brasileiros poderá diminuir significativamente? Nesse texto, ninguém critica a minha camiseta apertada, o meu gosto por futebol ou o meu relógio branco. Nesse texto – que, repito, está escrito em português –, ninguém ofendeu minha pátria amada Brasil. E, mais importante: nesse texto, NINGUÉM duvidou da minha inteligência ou poder de escolha.

O meu nacionalismo corre nas veias: rápido, sincero, pulsante. Dona Terezinha (vocês ainda se lembram dela?) mudou-se para o Piauí depois de ver o seu Eduardo ser atingido por um PM no Complexo do Alemão. Dona Terezinha fala português e também faz parte da “turma simplória” sobre a qual falou o cantor do rádio. Pobre Dona Terezinha pobre. Será que ela também se indignou por não poder ir ao show de jazz na Europa? Não importa. Eu me indignei por ela.

Foto: Poracaso.com
Muitos adolescentes se enfezaram com o discurso do cantor do rádio. Ora, eles são apenas adolescentes, ouvindo música e deixando o cabelo crescer por cima das ideias. Por que não podem viajar pra Europa e pedir um Manuel? Ouvi dizer que querem reduzir a maioridade penal para 16 anos. Disseram isso em alto e bom português. E daí? Contanto que os fãs daquele cantor que apareceu no rádio possam matar a saudade do Brasil quando estiverem em Paris, tudo bem.  

Às vezes, a minha capa verde e amarela me aperta um pouco. Esse cheiro de naftalina impregnado no seu tecido me dá dor de cabeça. Mas um filho teu não foge à luta e, então, cá estou, hino nacional a punho, com muito orgulho, com muito amoooooor. Vou guardar a minha capa dentro de alguns dias, logo que o auê passar. Mas, oh: se aparecer qualquer coisa pela qual precise me indignar, me chamem! Coloco a capa de volta, brasilindo que sou, e saio por aí cantando Imagine: I’m a dreamer...  


domingo, 5 de abril de 2015

O menino Jesus

Hoje é Páscoa: dia da Ressurreição. Para os católicos, renasce Jesus. Dona Terezinha, lá do Complexo, também é Jesus: com documento passado e assinado em cartório. Dona Terezinha, lá do Complexo, também perdeu o seu menino numa quase sexta-feira da paixão. Virão Natais, virão novas Páscoas, virão quartas de cinzas e quaresmas, mas o menino da Dona Terezinha não estará com ela depois desse domingo.

Hoje é Páscoa: dia de comprar chocolates e presentear as crianças. O menino da Dona Terezinha também era criança, também gostava de chocolates e quem sabe até já acreditou em coelhos de páscoa. Será que Dona Terezinha, doméstica, mãe, além de economizar os 200 reais do curso de informática, teria comprado um ovo de chocolate e escondido na sua casa pequena, lá no Complexo?

ReproduçãoFacebook
Hoje é Páscoa. No Brasil inteiro, há gente chorando ao assistir encenações religiosas. Dona Terezinha, a mãe do Eduardo, que mora lá no Complexo, também chora. Mas o choro da Dona Terezinha não termina quando acaba o ato e chegam os aplausos. Dona Terezinha não tem nada o que aplaudir. Não há encenação alguma em seu drama.

Hoje é Páscoa. Amanhã é segunda-feira de uma semana qualquer. Todos se esquecerão do domingo, dos seus bacalhaus e suas missas. Para a Dona Terezinha, mãe do menino Dudu, essa é a primeira segunda-feira de todas que virão: com um “eu te amo” faltando no seu whatsapp e uma lembrança triste bem em frente ao seu portão.

Em todos os anos, repetem-se a Páscoa, a Sexta-Feira e os sábados de aleluia. No Complexo, que é a casa do menino Dudu e sua mãe, Dona Terezinha, repetem-se, todos os dias, uma guerra silenciosa em que, muitas vezes, só há um lado na briga: armado, apoderado, cruel.

Façamos encenações nas ruas de pedra. Façamos teatros e choremos nossas cruzes. Não vamos deixar que se esqueça o sofrimento dele, que morreu por muitos. Passemos adiante: o menino Dudu não está nessa Páscoa, nem estará nas outras que virão. Que toquem os sinos de todas as igrejas e espalhem o recado: não há mais o menino, que também era Jesus, mas há muitos Judas e muitíssimas pessoas que apenas lavam as suas (nossas) mãos.