sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Hay que viajar!

Não tenho filhos. Se os tivesse, escreveria uma carta mais ou menos como a de Aristóteles para Nicômaco, mas de um jeitinho menos frio-carinhoso-filosófico. Ou, para ser mais moderna, poderia fazer como Ted, de How I Met, e gravar um seriado: “a história de hoje, Kids...”. Tudo isso para contar sobre o tempo que passei na Argentina e as conclusões que esse intercâmbio-que-não-foi-intercâmbio trouxe até mim. Seria mais ou menos assim:

'Se algum dia aparecer uma oportunidade, escolha um país e coloque na cabeça que você vai morar nele por algum tempo. Passe meses a fio pensando nesse tal país, mas não pesquise muito, que é pra não tirar a graça quando você estiver lá, com os pezinhos no chão. Despeça dos seus amigos, dos seus pais, da sua cidade, da sua rotina. Vão cair umas lagriminhas (ou não), mas elas passam logo, logo. Acredite! Chegue ao aeroporto sem saber falar uma frase completa do idioma nativo desse país e passe muitos apertos e vergonha por isso. No fim das contas, depois do desespero inicial de não entender nada, você terá boas histórias e um desafio enorme pela frente.

More com quinze pessoas totalmente desconhecidas. Aprenda a dividir uma casa, a esperar a sua hora de usar a cozinha, a não dormir quando alguém resolveu juntar os amigos da faculdade e fazer um auê. Aprenda que todo mundo tem seu espaço e que é preciso respeitar o dos outros. Perceba que viver com pessoas da mesma idade pode ser uma das melhores coisas da sua vida: há sempre alguém disponível pruma cerveja, um jogo de adivinhações e um papo político. Você será uma pessoa melhor depois disso e terá amigos e estadia em um montão de países.

Cozinhe sua própria comida. Não uma ou duas vezes por semana, mas todos os dias. Depois de um tempo, você pegará gosto pela coisa. Literalmente. Comece a se preocupar com a sua própria saúde, afinal, quando estamos longe, não tem ninguém pra vigiar e cuidar da gente. Por isso, troque hambúrgueres por frutas, macarrão por verduras e, cervejas, bem, as cervejas continuam sempre lá. Firmes, fortes e geladinhas.

Conheça uma universidade totalmente diferente da sua, faça um estágio, comece um curso novo, trabalhe de graça, só por trabalhar. Conheça uma cultura nova. Perceba que cada lugar tem seus encantos, seus problemas e peculiaridades. Entenda que, por mais que você se encante por tudo que acabou de conhecer, nunca achará um lugar mais perfeito que o seu próprio país.

Faça amigos. Prove um drink novo e fique mais alegrinho que o normal. Fique feliz só de ver seus pais pela webcam. Namore um estrangeiro. Amadureça estilo JK: 5 anos em 7 meses. Aprenda que é preciso valorizar o desejo dos outros mas, entenda que, em alguns momentos, o mais difícil e importante é seguir a sua própria vontade. Por isso, aprenda a dizer não. E aprenda a dizer sim também.

Se algum dia aparecer uma oportunidade, more em outro país. E outro. E outro. E outro mais. O mundo fica tão grande quando saímos de casa, que nos tornamos menores, mais humildes e conscientes de que há mais cenários depois do nosso próprio quintal.

Se algum dia aparecer uma oportunidade, viaje. Se não aparecer, invente uma.
Mas não se esqueça: hay que viajar!'

sexta-feira, 19 de abril de 2013

O dia em que minha mãe descobriu o computador


O computador surgiu no início do século XX, mas, para a minha mãe, ele só nasceu – com suas janelas, fios e mouses – há uma semana. E-mail, facebook, Word, Skype e photoshop: essas palavras nem sequer faziam parte do vocabulário de Dona Marilene, que, no auge dos seus 50 e tantos, via o computador da minha casa como um monstro impossível de domar.



Eis que um dia a saudade apertou e espantou o seu medo da tecnologia – ou da modernidade, como dizem os bons mineiros. Tecla por tecla, minha mãe aprendeu a ligar a CPU, conectar a internet e navegar por aí. Ela, que tem quarenta e alguns anos de experiência como mestre dos mais humildes, arranjou um professor, arregaçou as mangas e, todos os dias, faz o seu dever de casa.

A uma semana atrás, o facebook nem imaginava que, entre as montanhas de Minas, numa casa com varanda e passarinhos na janela, havia uma Marilene Mol. Hoje, a carinha dela já está estampada entre os rostos virtuais, colorindo a internet com sua bondade e divertindo os meus amigos com as mensagens na minha timeline. “Já, hoje eu descobri o Alt Gr e o Shift”, conta, pelo skype, toda feliz.

Há dias em que o otimismo escapa dos nossos olhos – em manhãs de pães com manteiga e muito, muito sangue nos jornais, como cantou Vinicius – e a vontade de mudar o mundo parece uma grande bobagem, uma “síndrome de Dom Quixote”, como costumo ouvir por aí... Que ideia absurdamente romântica e utópica achar que o amor pode transformar as coisas, não é? Pois bem. Nesses dias, lembro da carinha da minha mãe me olhando pela webcam (que ela mesma escolheu na loja), encantada com o universo novo que se abriu pra ela, e volto a acreditar nos sentimentos que transformam. 

Bastou um primeiro passo e, agora, Dona Marilene caminha, sozinha, por um mundo cheio de novidades: surpresas dessas que vêm fora de hora... Conhecer amigos, digitar provas da escola, curtir a página do Robertão no facebook, ver as fotografias dos moleques da minha irmã no e-mail: nada disso moveu a minha mãe. Ela foi movida única e exclusivamente pelo amor.

“Quem tem mãe, não tem medo”, bem disse o Henfil. Acrescento: Quem tem mãe, como a minha, não tem medo de mudar o mundo - pelo amor. Tudo se tornou mais fácil, mais crível e melhor desde o dia em que minha mãe descobriu o computador. 


segunda-feira, 25 de março de 2013

Tradução


Duas portas e uma cancela meio caída, que soa um ranger incômodo quando cumpre seu abre e fecha teimoso. A cruz colada à parede denuncia a esperança escondida na casinha ao lado da igreja. Interior do interior de Minas. Gente escondida debaixo do telhado de amianto, em cima do chão batido.

Para conhecer os moradores, é preciso bater uma, duas, três vezes na portinha de madeira. Moram longe, onde tudo parece ser difícil: a escola não funciona em dia de chuva. “Quando chove, menina, na estrada, só passa avião!”. A saúde não anda lá muito bem: vez ou outra, aparece um doutor, mas, remédio, não tem! Telefone não “pega”, o preço na venda está caríssimo e a igreja de Santo Antônio, o das causas urgentes, há muito, precisa de reforma.

No meio da praça, centro da cidadezinha que não está no mapa, há um banco, um cachorro, um cavalo e um senhor que observa. Observa os meninos que brincam descalços, inocentes no desconhecer do mundo que os espera. Observa o mato que cresce no cemitério por falta de um coveiro. “É a parte que me cabe deste latifúndio”, diria, se conhecesse João Cabral. Vê uma moto que passa a toda velocidade – único barulho nessa manhã de sábado quente, com suor que escorre no rosto. Tudo está calmo, com um sossego que chega a doer.

Ninguém vai até àquela casinha. Ninguém nunca parou para ouvir as histórias de quem cuida daquele chão como se fosse um filho. Às vezes, mais que tudo – o médico que não chega, a escola que não abre porque relampejou, a estrada que só passa avião –, as pessoas só precisam de alguém que as escute.

Podem dizer que memórias não mudam o mundo, que contar histórias nunca foi arma contra coisa nenhuma. Mas, naquele sábado, entendi – ainda mais – a beleza que há no querer escrever.

Tampei a caneta e, sem querer, balbuciei Caetano: “meu trabalho é te traduzir...” 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Um Marco.


Um marco na história desse Brasil de meu (ou seria do seu?) Deus. Aliás, não um marco, um Marco. O Marco. Feliciano. A Comissão de Direitos Humanos está em festa – com traje de gala, segurança na porta e convite para entrar. Ora, afinal, qual brasileiro não está feliz com o novo presidente? Não consigo pensar em um nome mais apropriado para ocupar esse cargo tão, tão, tão inútil. O Brasil não precisa de uma comissão para zelar pelos direitos humanos, oras! Basta andar pelas ruas, ler os jornais ou assistir à Patrícia Poeta no horário nobre, que percebemos o quanto é dispensável uma comissão desse tipo. Afinal, não há minorias nesse país: somos uma grande massa verde e amarela, completamente idêntica e uniforme.

 Não há quem pense diferente. Não há quem cultue seus próprios deuses.  Não há mulheres nesse oito de março que precisem recorrer a uma Lei das Marias muitas e todas. Não há nenhum tipo de preconceito contra homossexuais: se eles estão no seu próprio canto, que mal há? Desde que não queiram cometer o a-b-s-u-r-d-o de se casar. Que desnecessário celebrar o amor, não é? 

E as raças etnias cores e formas de cabelos? São todas aceitas, respeitadas e têm a mesmíssima oportunidade de ser aquilo que sonham (as cotas são outra medida absolutamente desnecessária, diga-se de passagem). Não há índios expulsos de suas casas para dar lugar à beleza e frieza de um concreto feito para inglês ver em dia de futebol. Não há deficientes que encontram obstáculos quando querem atravessar a rua e comprar um pão. Por falar em pão, todos os brasileiros tem pão, leite, carne, ovos, salada e Mac lanche feliz na mesa. Olha nosso IDH, que coisa mais linda?! Não há quem tenha fome e precise contar os dias no calendário para receber uns reais na hora de tirar o cartão da bolsa família. Família. O Brasil adora marchar pela família. Somos um país que deveria protagonizar uma propaganda de margarina. Êta, orgulho!

Olhando essa perfeição toda (é ‘direitos e humanos’ que não acabam mais!) fica difícil não se emocionar com o Feliciano (tem alegria até no nome, vejam só!) presidindo nossa Comissão. Quem sabe assim não acaba o teatro barato e o Brasil admite para todo o mundo que, por aqui, não precisamos de ninguém zelando pelos Direitos Humanos? Chega de modéstia, gente! Dizem que somos craques em jogar e organizar copas do mundo. MENTIRA! Somos tão craques em garantir os direitos da nossa gente que o plano é acabar com a comissão!

Parem os protestos, tirem as faixas das ruas, não assinem petições. Deixem o país seguir o seu plano, numa reta, com viseiras. Pra baixo. Pra trás.

2013: Feliz-esse-ano. (E ainda é março!) 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

A falta que ele faz¹


¹ Artigo publicado no caderno "Pensar", do jornal Estado de Minas, em 2 de fevereiro de 2013. 

Em tempos de Comissão da Verdade – quando o Estado brasileiro toma para si a tarefa de clarear os cantos escuros da ditadura militar –, é difícil não recordar o traço rebelado e atrevido de Henfil. O lápis e o nanquim que palpitavam em tudo: nos rumos da política e da economia, nos cenários de desigualdade, no comportamento de homens e mulheres a quem acusava dessa ou daquela atitude. Ou da falta dela. Pois em 4 de janeiro o calendário marcou 25 anos sem ele. Para as gerações que o cartunista não cutucou, não provocou ou não tirou do sério, resta uma espécie de vácuo: Henfil passou feito um cometa – quem não viu perdeu.

Henrique de Souza Filho, Henfil. 
Mineiríssimo, nasceu Henrique de Souza Filho, na cidade de Ribeirão das Neves, no mês de fevereiro. Se estivesse vivo, faria, na terça-feira, 69 anos (que certamente celebraria com uma piada obscena). Aos 20 anos, já era cartunista na Revista Alterosa. Dali saltaria para outros segmentos da imprensa, como o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports, Jornal da Tarde, Correio da Manhã, Intervalo e as revistas Isto É, Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro. Também brindou, com sua irreverência, um dos mais importantes jornais da imprensa alternativa, O Pasquim. Sem falar do cinema (com o filme Tanga, deu no New York Times) e da televisão (com o programa TV Mulher, da Rede Globo). Hemofílico, morreu em 1988, vitimado pela Aids (contraída por meio de uma transfusão de sangue), depois de brigar feroz e obcecadamente pelo fim do regime militar, da tortura, dos exílios, pela democracia, pelo voto direto, pelo fim da fome e da miséria, pela educação, pelo direito à vida – mas não a qualquer vida. Só valia a vida digna. 

Cartunista, quadrinista, escritor e jornalista, Henfil era dessas figuras que militam incansavelmente, cansando aqueles que se recusavam a pensar em liberdade. Atribuía a seu próprio desenho (e também à própria escrita) a marca de um jornalismo socialmente engajado, que se ocupava da crítica social, política e cultural. Não por mero acaso, chegou a integrar o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, como suplente, e a Associação Brasileira de Imprensa, como vogal. Nos anos 70, participou ativamente do movimento grevista dos jornalistas e, segundo o ex-presidente do sindicato da categoria em São Paulo Audálio Dantas, queria “comer o fígado” dos donos de jornais. Mais tarde, reuniria desenhistas como Laerte, Nilson, Chico Caruso, Paulo Caruso e Angeli para integrar a Oboré, a pequena empresa de comunicação criada para divulgar os movimentos de resistência ao governo e as injustiças praticadas pelo regime contra as bases operárias do ABC paulista. A partir dos quadrinhos – e sem receber por isso – o grupo de cartunistas dedicou-se à conscientização política dos operários. 

Adepto da palavra e do desenho capazes de traduzir, Henfil se empenhava para ser compreendido pelas classes populares, e não apenas pelos intelectuais. Queria provocar reflexão, indignação e, a partir daí, ação. “O humor pelo humor é sofisticação, é frescura”, bradava aos amigos, explicando que, para ser levado a sério, o humorismo deveria ser “jornalístico, engajado, quente”. E sofrido – faltou dizer. Henfil fazia rir, mas também fazia doer. Foi assim, por exemplo, quando a Graúna, personagem mais famosa da Turma da Caatinga, revelou os três mitos alimentados pelos brasileiros nas regiões castigadas pela seca: Papai Noel, cegonha e leite. Ou quando ela se gaba a outros dois personagens (o cangaceiro Zeferino e o Bode Orelana) de pertencer a um lugar como a caatinga, “a maior exportadora de crianças para o céu”. 

As histórias da caatinga tomavam o Nordeste como metáfora dos mais pobres. Nos desenhos, um outro social ganhava rosto através dos personagens e mostrava aos brasileiros a cara do analfabetismo, da mortalidade infantil, da seca e da fome. Era assim que os desenhos burlavam a censura à imprensa imposta pelo regime, denunciando problemas que acometiam grande parte dos brasileiros. Marcados por uma ironia aguçada, os traços questionavam o poder público e a reação – ou não reação – das pessoas. Cada personagem era uma frente de batalha: os fradinhos Baixim e Cumprido, inspirados nos frades dominicanos de Belo Horizonte, questionavam, num humor ácido e direto, o comportamento de uma sociedade apática, por vezes cúmplice. Estavam lá, nos diálogos entre os frades, as críticas mais ferrenhas aos preconceitos raciais e de gênero, ao poder público e seu descaso para com as classes mais pobres e, sobretudo, às contradições da Igreja Católica como instituição de fé. Sempre rebelde O traço e a palavra faziam as vezes de espada num cenário que não oferecia tréguas. 

A campanha pela anistia aos exilados políticos é outro bom exemplo. Tema recorrente nos quadrinhos e textos de Henfil, o movimento, iniciado em São Paulo, tentava fazer com que o governo militar cessasse as perseguições aos condenados por crimes políticos, acusados de manifestações e ações contra a ditadura. Nesse caso específico, a luta de Henfil sustentava-se no sentimento de solidariedade aos brasileiros perseguidos, mas sobretudo na situação do próprio irmão – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também exilado. A luta de Henfil dava, assim, contornos singulares aos sentimentos de muitas famílias separadas de entes queridos, forçados ao exílio. Famílias que, ao fim e ao cabo, só faziam representar o Brasil que sonhava com a “volta do irmão do Henfil”, como rezavam, na voz de Elis, os versos da canção O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Para o cartunista Nilson, a campanha pela anistia não teria a mesma força sem as Cartas da Mãe – aquelas que Henfil escrevia à mãe, dona Maria, e que, naquele período, eram publicadas semanalmente pela revista Isto É. Argumenta que elas davam um rosto a cada exilado. “Os 10 mil exilados, que ninguém sabia que existiam, fora os mais conscientizados, de repente tinham uma cara: era o Betinho, o filho da dona Maria”, avalia o desenhista em depoimento a Dênis de Moraes, autor da biografia do cartunista, O rebelde do traço, lançado pela editora José Olympio em 1996.

Naqueles anos, Henfil dedicou-se inteiro à campanha pela anistia. Segundo Dênis de Moraes, ele produziu desenhos para comitês de anistia, compareceu a uma série de atos públicos, fez questão de assinar manifestos pela “anistia ampla, geral e irrestrita”. Esse empenho, tão direcionado aos direitos humanos, chamou a atenção do núcleo mineiro do Comitê Brasileiro pela Anistia, que chegou a conceder ao cartunista, em abril de 1979, a Medalha Vladimir Herzog. 

Sim, é bastante provável que as histórias contadas por Henfil – pelo traço ou pelo texto – sejam calcadas em utopias, todas elas inspiradas em desejos e sonhos de cidadãos de outro tempo e lugar. Mas talvez por isso também estejam tão presentes nas ideias que deram corpo à Comissão da Verdade. Porque uma boa história não se limita à arte da narrativa. A boa história permite mudanças, possibilita novos desfechos, inaugura novos rumos. Até que se anuncie um novo tempo.

Por Hila Rodrigues e Jamylle Mol


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Travessia¹

¹ Texto publicado no jornal Lampião (curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto), em fevereiro de 2013. 

De um lado, na casa da esquina, três portas e uma janela se equilibram na parede em ruínas. Do outro, o trilho da Maria Fumaça dá a certeza de que estamos em Minas Gerais. O chão de madeira esconde a água turva que o rio leva em seu constante passeio pela cidade. Enquanto isso, de cima, uma cruz de pedra cercada de flores abençoa as tábuas largas, com uma fé colorida que parece contradizer a frieza do seu concreto. É nesse cenário que a primeira ponte de Minas Gerais repousa, no auge dos seus trezentos anos de história.

Alphonsus de Guimaraens ou Manoel Ramos, ponte de tábua ou de madeira. A diversidade de nomes só não é maior que o número de passos que já caminharam por lá: pés firmes dos bandeirantes com seus ouros falsos e sorrisos contidos, andar tranquilo das freiras em dia de missa, a criança que largou a mão da mãe para seguir a retreta da banda e o menino que equilibra os pneus da bicicleta entre um suspiro e outro. Todos eles, cada qual em um momento, atravessaram a ponte. E atravessar é fazer história, é começar em um canto e desafinar em outro. Para muitos, estar sobre essas madeiras combinadas no interior da cidade é a maior aventura que o cotidiano permite. Porque atravessar a ponte é, de fato, fazer história. Ninguém está lá apenas por estar.

Talvez o que mais se pareça com a ponte escondida no cantinho da cidade seja um jornal. Não na estrutura, para alívio dos céticos. Um é madeira, prego, ferro e concreto, combinados a fim de seguir a planta elaborada por um engenheiro ousado, a mando de um prefeito sedento por placas de inauguração. O outro é papel, palavra, tinta, imagens e um punhado de ideologia, combinados para seguir a pauta elaborada por um repórter ousado, com uma mente sedenta pela vontade de mudar o mundo.

A ponte escondida no cantinho da cidade só tem sentido se alguém passar por lá. Se não fosse por ela, o maquinista da Maria Fumaça jamais conheceria as paredes que os anos destruíram. Da mesma forma, o cachorro encostado na porta da casa invadida pelo tempo nunca saberia que o trem carrega pessoas de um lugar para outro. Um jornal escondido num cantinho da cidade só tem sentido se alguém abrir suas páginas e se render ao charme das manchetes. Se não fosse por ele, as pessoas jamais conheceriam os personagens que constroem a história. Da mesma forma, os personagens sequer imaginariam que há histórias para serem criadas.

Quem atravessa a ponte vê além do que está em uma das margens do rio. Quem lê um jornal enxerga mais longe do que o seu próprio quintal. A ponte está na rua. O jornal, para ter sentido, também deve estar. A ponte serve ao povo e, por isso, não faz distinção entre os passos descalços do morador de rua e os sapatos engraxados de quem não anda de ônibus. O jornal? Ora, o jornal também está a serviço de todos os passos, embora, às vezes, se esqueça disso e meta os pés pelas mãos. A cada dia, a ponte se renova. Ainda que sejam as mesmas madeiras e os mesmos pregos, o rio que corre lá embaixo já é outro e as pessoas que caminham são diversas. Em toda manhã, o jornal se reinventa. Embora sejam o mesmo papel e as mesmas letras, as vidas que preenchem os textos são outras e o mundo está diferente do dia anterior.

Ponte e jornal: embora estáticos, são passagem. Instrumentos que unem, eles levam, juntam, revelam. A ponte transforma o cenário de quem anda. O jornal faz com que as pessoas caminhem para alterar seus próprios cenários. Ambos são sempre um meio, não um fim.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Primeira pessoa

Não gosto de escrever em primeira pessoa. Talvez porque, sem saber, só penso em coletivo. Mas pode ser também o velho medo de dar a cara a tapa que às vezes resolve fazer uma revisita. A exceção de agora, no entanto, é necessária, já que o incômodo é singular demais para me esconder numa terceira pessoa comodista.

Falta pouco tempo para terminar a universidade. E, às vezes, me assusto com o que vejo por aí. Não sou fã de intelectualismos, desses em preto e branco que não sujam o pé, mas não consigo entender as pessoas que formam em um curso de humanas (sociais aplicadas, que seja!) sem ler nenhum livro inteiro sequer. É, no mínimo, apavorante pensar numa imprensa que desconhece seus antepassados, que não imagina o quanto o jornalismo já alterou realidades por aí... Não dá pra fugir: a prática é boa (diria: assustadoramente deliciosa), mas debruçar sobre a teoria e sobre os livros é algo que não dá pra deixar só por conta dos xerox que nos são indicados ao longo dos semestres. É difícil imaginar a perda de quem sai da universidade, em um curso de jornalismo, sem saber quem foi o Wainer, ou o Chatô, por exemplo. Não saber quem foi o Henfil então... uau! Desse, não preciso nem dizer.

Um dia, no começo de tudo (faz tempo, ai!), disseram que jornalistas devem ser chatos. Bom. Bem bom. Vamos ficar inconsolavelmente indignados com os problemas que cercam a cidade? Vamos! Que tal não deixar as grandes empresas mandarem e desmandarem no que é do povo? Ótimo. E a política, heim? Nada como ser chato ao entrevistar um desses nomes que falam bem, pro mal. O perigo é achar que esse “ser chato” é outra coisa que vai além de ser repórter (desses de verdade, sabem como?). Ser chato não significa negar tudo e todos com a veemência característica de quem ignora! Há, sim, outros chatos mais capazes do que o nosso umbigo enxerga, por que não? Há, sim, jornalistas (e muitos!) fazendo um belíssimo trabalho. Não, ninguém é melhor que o colega só porque acha que o é. Nem todo gênio é chato. Aliás, desconfio que a maioria deles passa longe disso. Quer coisa mais genial que a humildade? Desconheço.

Legal demais também é esse desejo de salvar o povo, falar do povo, escrever pro povo. Sensacional. É isso aí! Afinal, o jornalismo é feito para quem? O difícil é saber que o povo não é aquele que aparece na TV, todo juntinho quando rola uma manifestação. PASMEM: o povo é o colega de classe, é o porteiro, é o professor, é o motorista. Portanto, vamos, sim, querer fazer o melhor pro povo desse Brasil (e do mundo, por que não?), mas, antes, vamos lembrar que o povo tá ali pertinho. É assim tão difícil começar agora? Nem é. Basta fazer uma forcinha pra dar um bom dia que, com certeza, as boas intenções que rondam as monografias serão bem mais fáceis de serem aceitas no mundo carne e osso.

Jornalismo é um troço que faz pulsar, que tira o sono, que mexe com os miolos. Não sei se a gente perde esse amor todo pela profissão à medida que vai amadurecendo. Espero que não. Por agora, essas inquietações que me chegam sempre que vejo um humorista descompromissado com a verdade (a danada da verdade) se tornando um grande ídolo, a cultura nacional sendo cada vez menos conhecida por quem jura de pés juntos que quer ser repórter de um caderno especial (de cultura, óbvio) ou alguém reclamando de uma pauta “humana” demais, dá um arrepio. 

Podem dizer que não tenho nada – e absolutamente nada – a ver com isso. Mas, oras, há intromissões necessárias. Por que não?

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

É aquele menino que desenha a Graúna?



 4 de janeiro de 2013. Há 25 anos, Graúna, Zeferino, Bode Orelana, Baixim e Cumprido se despediram do Henfil. A Graúna só não chorou porque é “muito macha”, mas o Zeferino deixou de dar tiros para o alto com a sua espingarda e o Orelana não comeu nem um livrinho sequer. As ruas de Belo Horizonte ficaram mais sossegadas sem o Baixim, que desistiu de parar o pé para os velhinhos e assustar criancinhas por uns tempos. Cumprido andou mais sem graça, quietinho num canto. Todo mundo meio cabisbaixo, sentindo falta dos “putisgrilas” do Henfil...

Henrique de Souza Filho, Henrique Filho, Henriquinho, Tunebinha.  Em 4 de janeiro de 1988, o cartunista mineiro abandonou a prancheta dos desenhos, a guerrilha política e se juntou à filhinha da Graúna, no alto do céu.  Hemofílico, como seus dois irmãos Betinho e Chico Mário, Henfil contraiu o vírus da AIDS numa transfusão de sangue e, como naquela época, a doença ainda era novidade e os recursos eram escassos, não resistiu.  

Henfil sempre teve raiva da morte. E, enquanto viveu, despejou essa raiva em tudo quanto havia de errado no Brasil. As injustiças sociais, o descaso político com a região nordeste do país, os feitos malfeitos do regime militar, o imperialismo norte americano que transformava os outros povos em cucarachas: tudo isso o enervava a ponto de fazê-lo esquecer dos conselhos de Dona Maria. Não tinha jeito, nem censura: os quadrinhos teimavam em denunciar e contar a história real do país daquele momento. O país da ditadura, dos exílios, da tortura, da desigualdade social silenciosamente gritante, do sindicalismo, da anistia, dos bolos que crescem antes de serem repartidos... o Brasil da década de 70, do pós-68 eterno e do milagre econômico que nunca vimos o santo.

25 anos. De lá para cá, o Brasil do Henfil – numa rima mais que perfeita – passou por algumas modificações: o Lula, depois de teimar muito, virou presidente da república. A desigualdade social, embora lute com dentes e unhas para permanecer no país, diminuiu e parece que, enfim, a democracia – daquelas boas – está mais visível aos nossos olhos. No entanto, basta esconder o amarelado do tempo de um quadrinho desenhado na década de 70, que qualquer um acreditará que os personagens de Henfil vivem no país de hoje... os diálogos são atuais, os problemas são os mesmos, os preconceitos e as injustiças denunciados, idênticos. O nordeste ainda sofre com o descaso político. Há crianças que ainda morrem analfabetas. Os brasileiros ainda trocam o que é criado no Brasil pelo que vem do norte americano. Os ricos ainda são muito ricos e os pobres ainda são muito pobres. Mas faltam Robin Hood’s, ainda que Robin Hood’s cartunistas.

4 de janeiro. Pós réveillon. Época em que as pessoas olham para frente, fazem planos e traçam metas para o ano que chega... No entanto, hoje também é dia de olhar para trás e debruçar sobre o passado – genialmente atual.

Hoje é dia de 25 anos sem Henfil.