quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Travessia¹

¹ Texto publicado no jornal Lampião (curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto), em fevereiro de 2013. 

De um lado, na casa da esquina, três portas e uma janela se equilibram na parede em ruínas. Do outro, o trilho da Maria Fumaça dá a certeza de que estamos em Minas Gerais. O chão de madeira esconde a água turva que o rio leva em seu constante passeio pela cidade. Enquanto isso, de cima, uma cruz de pedra cercada de flores abençoa as tábuas largas, com uma fé colorida que parece contradizer a frieza do seu concreto. É nesse cenário que a primeira ponte de Minas Gerais repousa, no auge dos seus trezentos anos de história.

Alphonsus de Guimaraens ou Manoel Ramos, ponte de tábua ou de madeira. A diversidade de nomes só não é maior que o número de passos que já caminharam por lá: pés firmes dos bandeirantes com seus ouros falsos e sorrisos contidos, andar tranquilo das freiras em dia de missa, a criança que largou a mão da mãe para seguir a retreta da banda e o menino que equilibra os pneus da bicicleta entre um suspiro e outro. Todos eles, cada qual em um momento, atravessaram a ponte. E atravessar é fazer história, é começar em um canto e desafinar em outro. Para muitos, estar sobre essas madeiras combinadas no interior da cidade é a maior aventura que o cotidiano permite. Porque atravessar a ponte é, de fato, fazer história. Ninguém está lá apenas por estar.

Talvez o que mais se pareça com a ponte escondida no cantinho da cidade seja um jornal. Não na estrutura, para alívio dos céticos. Um é madeira, prego, ferro e concreto, combinados a fim de seguir a planta elaborada por um engenheiro ousado, a mando de um prefeito sedento por placas de inauguração. O outro é papel, palavra, tinta, imagens e um punhado de ideologia, combinados para seguir a pauta elaborada por um repórter ousado, com uma mente sedenta pela vontade de mudar o mundo.

A ponte escondida no cantinho da cidade só tem sentido se alguém passar por lá. Se não fosse por ela, o maquinista da Maria Fumaça jamais conheceria as paredes que os anos destruíram. Da mesma forma, o cachorro encostado na porta da casa invadida pelo tempo nunca saberia que o trem carrega pessoas de um lugar para outro. Um jornal escondido num cantinho da cidade só tem sentido se alguém abrir suas páginas e se render ao charme das manchetes. Se não fosse por ele, as pessoas jamais conheceriam os personagens que constroem a história. Da mesma forma, os personagens sequer imaginariam que há histórias para serem criadas.

Quem atravessa a ponte vê além do que está em uma das margens do rio. Quem lê um jornal enxerga mais longe do que o seu próprio quintal. A ponte está na rua. O jornal, para ter sentido, também deve estar. A ponte serve ao povo e, por isso, não faz distinção entre os passos descalços do morador de rua e os sapatos engraxados de quem não anda de ônibus. O jornal? Ora, o jornal também está a serviço de todos os passos, embora, às vezes, se esqueça disso e meta os pés pelas mãos. A cada dia, a ponte se renova. Ainda que sejam as mesmas madeiras e os mesmos pregos, o rio que corre lá embaixo já é outro e as pessoas que caminham são diversas. Em toda manhã, o jornal se reinventa. Embora sejam o mesmo papel e as mesmas letras, as vidas que preenchem os textos são outras e o mundo está diferente do dia anterior.

Ponte e jornal: embora estáticos, são passagem. Instrumentos que unem, eles levam, juntam, revelam. A ponte transforma o cenário de quem anda. O jornal faz com que as pessoas caminhem para alterar seus próprios cenários. Ambos são sempre um meio, não um fim.

Um comentário:

  1. Sei que foi uma metáfora. Mas eu gostei do texto, sobretudo, porque passei durante três anos por essa ponte, cada vez de um jeito, cada vez um fragmento de mim.

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