De um lado, na casa da esquina,
três portas e uma janela se equilibram na parede em ruínas. Do outro, o trilho
da Maria Fumaça dá a certeza de que estamos em Minas Gerais. O chão de madeira esconde
a água turva que o rio leva em seu constante passeio pela cidade. Enquanto
isso, de cima, uma cruz de pedra cercada de flores abençoa as tábuas largas, com
uma fé colorida que parece contradizer a frieza do seu concreto. É nesse
cenário que a primeira ponte de Minas Gerais repousa, no auge dos seus
trezentos anos de história.
Alphonsus de Guimaraens ou Manoel
Ramos, ponte de tábua ou de madeira. A diversidade de nomes só não é maior que
o número de passos que já caminharam por lá: pés firmes dos bandeirantes com
seus ouros falsos e sorrisos contidos, andar tranquilo das freiras em dia de
missa, a criança que largou a mão da mãe para seguir a retreta da banda e o
menino que equilibra os pneus da bicicleta entre um suspiro e outro. Todos
eles, cada qual em um momento, atravessaram a ponte. E atravessar é fazer
história, é começar em um canto e desafinar em outro. Para muitos, estar sobre essas
madeiras combinadas no interior da cidade é a maior aventura que o cotidiano
permite. Porque atravessar a ponte é, de fato, fazer história. Ninguém está lá
apenas por estar.
Talvez o que mais se pareça com a
ponte escondida no cantinho da cidade seja um jornal. Não na estrutura, para
alívio dos céticos. Um é madeira, prego, ferro e concreto, combinados a fim de
seguir a planta elaborada por um engenheiro ousado, a mando de um prefeito
sedento por placas de inauguração. O outro é papel, palavra, tinta, imagens e
um punhado de ideologia, combinados para seguir a pauta elaborada por um
repórter ousado, com uma mente sedenta pela vontade de mudar o mundo.
A ponte escondida no cantinho da
cidade só tem sentido se alguém passar por lá. Se não fosse por ela, o
maquinista da Maria Fumaça jamais conheceria as paredes que os anos destruíram.
Da mesma forma, o cachorro encostado na porta da casa invadida pelo tempo nunca
saberia que o trem carrega pessoas de um lugar para outro. Um jornal escondido
num cantinho da cidade só tem sentido se alguém abrir suas páginas e se render
ao charme das manchetes. Se não fosse por ele, as pessoas jamais conheceriam os
personagens que constroem a história. Da mesma forma, os personagens sequer
imaginariam que há histórias para serem criadas.
Quem atravessa a ponte vê além do
que está em uma das margens do rio. Quem lê um jornal enxerga mais longe do que
o seu próprio quintal. A ponte está na rua. O jornal, para ter sentido, também
deve estar. A ponte serve ao povo e, por isso, não faz distinção entre os
passos descalços do morador de rua e os sapatos engraxados de quem não anda de
ônibus. O jornal? Ora, o jornal também está a serviço de todos os passos,
embora, às vezes, se esqueça disso e meta os pés pelas mãos. A cada dia, a
ponte se renova. Ainda que sejam as mesmas madeiras e os mesmos pregos, o rio
que corre lá embaixo já é outro e as pessoas que caminham são diversas. Em toda
manhã, o jornal se reinventa. Embora sejam o mesmo papel e as mesmas letras, as
vidas que preenchem os textos são outras e o mundo está diferente do dia
anterior.
Ponte e jornal: embora estáticos,
são passagem. Instrumentos que unem, eles levam, juntam, revelam. A ponte
transforma o cenário de quem anda. O jornal faz com que as pessoas caminhem
para alterar seus próprios cenários. Ambos são sempre um meio, não um fim.
Sei que foi uma metáfora. Mas eu gostei do texto, sobretudo, porque passei durante três anos por essa ponte, cada vez de um jeito, cada vez um fragmento de mim.
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