quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Maria de um tal João

“É com muito prazer que lhe devo a honra de vir aqui ‘de frente’ aos meus compadres e amigos, com toda fidelidade, pra pedir a mão de sua filha em casamento para que possamos compartilhar o dia a dia.” Após seguidas semanas de ensaio, foi esse o discurso que os convidados de Maria de Fátima Gentil Soares ouviram no dia do seu noivado.  Fatinha, como é conhecida, escutou o pedido de casamento no rádio e fez com que o candidato a noivo João Bosco, o Joãozinho, repetisse as frases feitas.

Assim como a história dos personagens homônimos do conto dos “Irmãos Grimm”, o noivado de Joãozinho e Maria de Fátima foi bastante singular: ela tinha apenas doze anos e o noivo, treze. Ambos moradores de São Pedro dos Ferros, interior de Minas Gerais, Fatinha e Joãozinho começaram a namorar no dia em que se conheceram, na capelinha da cidade. “Quando ele saiu da capela e me deu um beijinho no rosto, pensei: Opa! Vamo namorar!”, relembra. A partir desse dia, Fatinha começou a juntar todo o dinheiro que ganhava vendendo abóboras para comprar o bolo do seu noivado e uma garrafa de refrigerante – foram necessários três meses pra conseguir a tal quantia.

Pela pouca idade da filha, o “Sô” Manoel e a Dona Rita não aprovaram a decisão que viria apenas seis meses depois de partido o custoso bolo do noivado: ainda com doze anos, Fatinha saiu de casa para ir morar com Joãozinho, no distrito de Furquim, a 60 km da terra natal do jovem, bem jovem, casal. Levando na mudança apenas um colchão, Fatinha e Joãozinho deram início à promessa de “compartilhar o dia a dia” que está durando até hoje, 21 anos mais tarde.

Antes de iniciar essa “loucura” de sair de casa, Fatinha, junto aos seus quatro irmãos, trabalhou, desde os três anos, na lavoura de arroz com os pais, todas as tardes, depois de frequentar as aulas na escola de São Pedro dos Ferros, a 20 km de sua casa.

Devido ao seu pavor em ter que ficar dentro da sala de aula, sem poder sair ou falar sem permissão, num tempo e lugar onde os professores usavam da força física para conseguir disciplina das crianças, Fatinha abandonou os estudos ainda na terceira série primária, atual 4º ano do Ensino Fundamental, aos nove anos. Para esconder dos pais esse abandono, a menina continuou cumprindo a mesma rotina de todos os dias: acordava às quatro horas da manhã, andava por mais de 40 minutos numa estrada de terra, de mochila nas costas, em direção à escola. No entanto, escondia os materiais em uma bueira da estrada e passava a manhã vendendo abóboras para, com o dinheiro das vendas, comprar um vestido de chitão. Demorou quase um ano para que os pais descobrissem que Fatinha não ia mais às aulas.

Contrariando a tradição da época, os pais de Fatinha pouco utilizaram de castigos físicos na educação dos filhos. Sempre que surgia alguma “levadice”, tal qual essa de não ir à escola, “Sô” Manoel e Dona Rita faziam um longo sermão, que, pela dureza e simplicidade das palavras, doíam mais que qualquer surra ou puxão de orelha.

Como em quase toda regra, há uma exceção, um dia Fatinha apanhou muito, de vara de marmelo. Para conseguir tamanha façanha, a de irritar a calma Dona Rita, Fatinha e seu irmão mais novo, Helinho, encontraram uma garrafa de aguardente que o pai, “Sô” Manoel, havia enterrado no terreiro de casa para que a bebida ficasse mais curtida, mais forte. Os irmãos, então com dez e oito anos, respectivamente, de tanto “provar” aquele estranho achado, ficaram embriagados. Ao encontrar os filhos rindo excessivamente pela casa com a garrafa nas mãos, dançando sem música e falando coisas desconexas, Dona Rita logo compreendeu o que havia acontecido. Para entender que “aquilo não era coisa de criança”, os meninos apanharam. Devido ao efeito do álcool, Fatinha não sentiu dor alguma, só entendeu o que tinha acontecido quando acordou no dia seguinte e os irmãos contaram o tragicômico episódio.

É com essa forma de educar, priorizando o diálogo em relação aos tapas e beliscões, que Fatinha e Joãozinho educam seus três filhos: Fernando, 17 anos; Amanda, 15 anos e João, o “Nenê”, 13 anos. Fernando nasceu poucos meses depois que Fatinha saiu de casa para morar com Joãozinho. Aos treze anos, ela “brincava de boneca” com um bebê de verdade. Sem ajuda dos pais, que ainda não haviam aceitado o casamento, e sem entender nada de criança, as dificuldades em criar o menino foram imensas. Para piorar a situação, Fernando foi um bebê pouco saudável, sempre estava doente por um ou outro motivo.

Em uma dessas doenças, foi receitado a Fernando um remédio em pó, que deveria ser dissolvido em água nas quantidades indicadas pelo médico. Fatinha, pela sua pouca idade e muita ingenuidade, tentou fazer o bebê tomar o remédio a seco. O menino quase morreu engasgado. Hoje, anos mais tarde, Fatinha relembra esse “sufoco” pelo qual passaram - ele, literalmente - com humor.  
            
Fatinha viveu em Furquim com Joãozinho e Fernando até o nascimento da segunda filha, Amanda, quando foi morar em uma fazenda nas redondezas de Belo Horizonte. Na fazenda, Fatinha cuidava dos filhos pequenos e, para ajudar com os gastos, trabalhava como cozinheira na sede. Foi nessa fazenda que, dois anos mais tarde, nasceu o “Nenê”, filho caçula do casal.
            
Uma vez por semana, Fatinha, acompanhada dos três filhos, ia, numa carroça, até o centro da cidade com o objetivo de comprar e vender coisas. Em quase uma hora de “viagem”, a família enfrentava os “empaques” da mula que puxava a carroça toda vez que o movimento de carros se intensificava. Fatinha não tinha vergonha nenhuma em descer da carroça e segurar pelas rédeas o animal teimoso. Afinal, “quem fez o seu patuá, que o carregue!”, brinca.
            
Passados os quatro anos nos quais viveu em Belo Horizonte, Fatinha voltou a Furquim, para a mesma casa da vida de recém-casada. E é lá que ela vive atualmente, com os três filhos e o marido.
            
Localizada na Fazenda São Geraldo (Furquim), a 110 km de Mariana, interior de Minas Gerais, a pequena casa de Fatinha está sempre com fumaça saindo da chaminé, o fogão à lenha só “descansa” à noite. Todos os dias, às 5 horas da manhã, Fatinha já está com seu café coado, pronta para sair. Levando consigo uma “marmita” para o almoço, ela trabalha cortando cana até às 18 horas, quando volta para casa e prepara o jantar.
            
Aos 33 anos, o maior divertimento de Fatinha é assistir às telenovelas durante a semana. O sossego de estar em casa, próxima aos filhos e ao marido já é motivo de felicidade e faz com que ela não tenha nenhuma vontade de morar na cidade. Num mundo em que “é difícil encontrar gente de bem”, morar na “roça” pode ser um privilégio. Fatinha não tem vontade de conhecer nenhum lugar, vê-los pela televisão já é suficiente.
            
Fazendo jus ao ditado popular “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, Fatinha faz questão de que seus três filhos frequentem a escola regularmente. Ao contrário da mãe, hoje os meninos têm um carro que os buscam para a aula e não precisam trabalhar para ajudar nas despesas de casa. Após tantas dificuldades enfrentadas pela vida afora, Fatinha vive hoje uma vida economicamente estável e, ao se lembrar do passado, conclui que as coisas melhoraram muito.
            
Esse mesmo passado se apresenta para Fatinha como uma grande sucessão de loucuras: sair de casa ainda criança, morar próximo a uma cidade grande, deixar de estudar...
            
Apesar de classificar seus atos como “loucuras”, especificamente o casamento precoce, Fatinha não hesita em dizer, entre altas risadas, que faria tudo outra vez da mesma forma, com exceção talvez do episódio em que encontrou a garrafa de aguardente do pai. “Se saímos de casa meninos e estamos juntos até hoje é porque, no mínimo, posso falar que deu certo”, diz.
            
Certamente, o compositor brasileiro Chico Buarque não conhecia João Bosco Soares, tampouco Maria de Fátima Gentil, quando escreveu sua música titulada “Joãozinho e Maria”. No entanto, parece ser para eles que o poeta dedicou os versos: “no tempo da maldade, acho que a gente nem era nascido...”

             

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