“É com muito prazer que lhe
devo a honra de vir aqui ‘de frente’ aos meus compadres e amigos, com toda
fidelidade, pra pedir a mão de sua filha em casamento para que possamos
compartilhar o dia a dia.” Após seguidas semanas de ensaio, foi esse o discurso
que os convidados de Maria de Fátima Gentil Soares ouviram no dia do seu
noivado. Fatinha, como é conhecida, escutou
o pedido de casamento no rádio e fez com que o candidato a noivo João Bosco, o
Joãozinho, repetisse as frases feitas.
Assim como a história dos personagens homônimos do conto
dos “Irmãos Grimm”, o noivado de Joãozinho e Maria de Fátima foi bastante
singular: ela tinha apenas doze anos e o noivo, treze. Ambos moradores de São
Pedro dos Ferros, interior de Minas Gerais, Fatinha e Joãozinho começaram a
namorar no dia em que se conheceram, na capelinha da cidade. “Quando ele saiu
da capela e me deu um beijinho no rosto, pensei: Opa! Vamo namorar!”, relembra.
A partir desse dia, Fatinha começou a juntar todo o dinheiro que ganhava
vendendo abóboras para comprar o bolo do seu noivado e uma garrafa de
refrigerante – foram necessários três meses pra conseguir a tal quantia.
Pela pouca idade da filha, o “Sô” Manoel e a Dona Rita
não aprovaram a decisão que viria apenas seis meses depois de partido o custoso
bolo do noivado: ainda com doze anos, Fatinha saiu de casa para ir morar com
Joãozinho, no distrito de Furquim, a 60 km da terra natal do jovem, bem jovem,
casal. Levando na mudança apenas um colchão, Fatinha e Joãozinho deram início à
promessa de “compartilhar o dia a dia” que está durando até hoje, 21 anos mais
tarde.
Antes de iniciar essa “loucura” de sair de casa, Fatinha,
junto aos seus quatro irmãos, trabalhou, desde os três anos, na lavoura de
arroz com os pais, todas as tardes, depois de frequentar as aulas na escola de
São Pedro dos Ferros, a 20 km de sua casa.
Devido ao seu pavor em ter que ficar dentro da sala de
aula, sem poder sair ou falar sem permissão, num tempo e lugar onde os
professores usavam da força física para conseguir disciplina das crianças,
Fatinha abandonou os estudos ainda na terceira série primária, atual 4º ano do
Ensino Fundamental, aos nove anos. Para esconder dos pais esse abandono, a menina continuou
cumprindo a mesma rotina de todos os dias: acordava às quatro horas da manhã,
andava por mais de 40 minutos numa estrada de terra, de mochila nas costas, em
direção à escola. No entanto, escondia os materiais em uma bueira da estrada e
passava a manhã vendendo abóboras para, com o dinheiro das vendas, comprar um
vestido de chitão. Demorou quase um ano para que os pais descobrissem que
Fatinha não ia mais às aulas.
Contrariando a tradição da época, os pais de Fatinha pouco
utilizaram de castigos físicos na educação dos filhos. Sempre que surgia alguma
“levadice”, tal qual essa de não ir à escola, “Sô” Manoel e Dona Rita faziam um
longo sermão, que, pela dureza e simplicidade das palavras, doíam mais que
qualquer surra ou puxão de orelha.
Como em quase toda regra, há uma exceção, um dia Fatinha
apanhou muito, de vara de marmelo. Para conseguir tamanha façanha, a de irritar
a calma Dona Rita, Fatinha e seu irmão mais novo, Helinho, encontraram uma
garrafa de aguardente que o pai, “Sô” Manoel, havia enterrado no terreiro de
casa para que a bebida ficasse mais curtida, mais forte. Os irmãos, então com
dez e oito anos, respectivamente, de tanto “provar” aquele estranho achado,
ficaram embriagados. Ao encontrar os filhos rindo excessivamente pela casa com
a garrafa nas mãos, dançando sem música e falando coisas desconexas, Dona Rita
logo compreendeu o que havia acontecido. Para entender que “aquilo não era
coisa de criança”, os meninos apanharam. Devido ao efeito do álcool, Fatinha
não sentiu dor alguma, só entendeu o que tinha acontecido quando acordou no dia
seguinte e os irmãos contaram o tragicômico episódio.
É com essa forma de educar, priorizando o diálogo em
relação aos tapas e beliscões, que Fatinha e Joãozinho educam seus três filhos:
Fernando, 17 anos; Amanda, 15 anos e João, o “Nenê”, 13 anos. Fernando nasceu
poucos meses depois que Fatinha saiu de casa para morar com Joãozinho. Aos
treze anos, ela “brincava de boneca” com um bebê de verdade. Sem ajuda dos
pais, que ainda não haviam aceitado o casamento, e sem entender nada de
criança, as dificuldades em criar o menino foram imensas. Para piorar a
situação, Fernando foi um bebê pouco saudável, sempre estava doente por um ou outro
motivo.
Em uma dessas doenças, foi
receitado a Fernando um remédio em pó, que deveria ser dissolvido em água nas
quantidades indicadas pelo médico. Fatinha, pela sua pouca idade e muita
ingenuidade, tentou fazer o bebê tomar o remédio a seco. O menino quase morreu
engasgado. Hoje, anos mais tarde, Fatinha relembra esse “sufoco” pelo qual
passaram - ele, literalmente - com humor.
Fatinha viveu em Furquim com Joãozinho e Fernando até o
nascimento da segunda filha, Amanda, quando foi morar em uma fazenda nas
redondezas de Belo Horizonte. Na fazenda, Fatinha cuidava dos filhos pequenos
e, para ajudar com os gastos, trabalhava como cozinheira na sede. Foi nessa
fazenda que, dois anos mais tarde, nasceu o “Nenê”, filho caçula do casal.
Uma vez por semana, Fatinha, acompanhada dos três filhos,
ia, numa carroça, até o centro da cidade com o objetivo de comprar e vender
coisas. Em quase uma hora de “viagem”, a família enfrentava os “empaques” da
mula que puxava a carroça toda vez que o movimento de carros se intensificava.
Fatinha não tinha vergonha nenhuma em descer da carroça e segurar pelas rédeas
o animal teimoso. Afinal, “quem fez o seu patuá, que o carregue!”, brinca.
Passados os quatro anos nos quais viveu em Belo
Horizonte, Fatinha voltou a Furquim, para a mesma casa da vida de recém-casada.
E é lá que ela vive atualmente, com os três filhos e o marido.
Localizada na Fazenda São Geraldo (Furquim), a 110 km de
Mariana, interior de Minas Gerais, a pequena casa de Fatinha está sempre com
fumaça saindo da chaminé, o fogão à lenha só “descansa” à noite. Todos os dias,
às 5 horas da manhã, Fatinha já está com seu café coado, pronta para sair.
Levando consigo uma “marmita” para o almoço, ela trabalha cortando cana até às
18 horas, quando volta para casa e prepara o jantar.
Aos 33 anos, o maior divertimento de Fatinha é assistir às
telenovelas durante a semana. O sossego de estar em casa, próxima aos filhos e
ao marido já é motivo de felicidade e faz com que ela não tenha nenhuma vontade
de morar na cidade. Num mundo em que “é difícil encontrar gente de bem”, morar
na “roça” pode ser um privilégio. Fatinha não tem vontade de conhecer nenhum
lugar, vê-los pela televisão já é suficiente.
Fazendo jus ao ditado popular “faça o que eu digo, não
faça o que eu faço”, Fatinha faz questão de que seus três filhos frequentem a
escola regularmente. Ao contrário da mãe, hoje os meninos têm um carro que os
buscam para a aula e não precisam trabalhar para ajudar nas despesas de casa.
Após tantas dificuldades enfrentadas pela vida afora, Fatinha vive hoje uma
vida economicamente estável e, ao se lembrar do passado, conclui que as coisas
melhoraram muito.
Esse mesmo passado se apresenta para Fatinha como uma
grande sucessão de loucuras: sair de casa ainda criança, morar próximo a uma
cidade grande, deixar de estudar...
Apesar de classificar seus atos como “loucuras”,
especificamente o casamento precoce, Fatinha não hesita em dizer, entre altas
risadas, que faria tudo outra vez da mesma forma, com exceção talvez do
episódio em que encontrou a garrafa de aguardente do pai. “Se saímos de casa
meninos e estamos juntos até hoje é porque, no mínimo, posso falar que deu
certo”, diz.
Certamente, o compositor brasileiro Chico Buarque não
conhecia João Bosco Soares, tampouco Maria de Fátima Gentil, quando escreveu
sua música titulada “Joãozinho e Maria”. No entanto, parece ser para eles que o
poeta dedicou os versos: “no tempo da maldade, acho que a gente nem era
nascido...”
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