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Foto: Jamylle Mol |
Nasci em Piau, um pequeno povoado da cidade de Piranga, na
Zona da Mata mineira. Meu pai, José Cantaro da Rocha, e minha mãe, Maria Mônica
de Oliveira, cuidavam de mim e dos meus irmãos: Jandira, Efigênia e Geraldo. Comecei
a trabalhar muito cedo: olhava menino pros outros, apanhava café, capinava
arroz... Fazia um serviço bruto mesmo. Tinha muita gente em casa, então, todos
tinham que trabalhar. Passei a infância só trabalhando e trabalhando. Cheguei a
ir pra escola, mas não aprendi nada. Eu gostava da escola, mas não entendia as
coisas. Até hoje, eu fico assim “Por que é que eu não aprendi a ler, meu Deus
do céu?”. Nem meu nome eu sei escrever direito. Mas tô vivendo assim mesmo. Tem muitos aí que sabem ler, mas não sabem
viver. Eu não sei ler, não, mas já vou levando bem a minha vida.
Minha mãe era muito boazinha, não brigava com a gente. Não
deixava os filhos intrometerem no assunto dos mais velhos, não podia passar na
frente da mãe nas conversas porque era muito feio. Só podia ficar escutando... A
gente era muito pobre, nem roupa direito eu tinha. Quando ganhava um vestidinho
novo, já ficava toda alegre e dava graças a Deus! Vivia todo mundo perto, em
Piranga mesmo, cada um esparrodado em
um canto. Não lembro muito de quando eu era criança porque já faz bastante
tempo. Sei que era uma luta, mas valeu a pena!
Quando eu era
pequenina, jogava bilboquê
O tempo foi passando e
eu cresci, não sei pra quê
Saudade do colégio, eu
fazia o que queria e nada me acontecia
Era tudo diferente!
Hoje, não posso fazer
nada porque eu vivo no batente...
(Em meio à conversa, Dona Dionísia canta os versos)
Meu pai morreu muito novo, antes mesmo de eu me casar. Não era
bravo, deixava a gente ir ao baile. Eu ia pro
baile de vez em quando, e, se me ofereciam alguma bebida, eu esperava a pessoa
olhar pro lado e jogava fora. Gostava um pouco de vinho só. Também gostava de carnaval
e de cantar. Sempre gostei muito de cantar. Colocava um saião e ia pra rua,
quando era dia de festa.
Casei aos 19 anos, com o Laurídes, que também era de Piranga.
Não namorei muito, não, porque, como diz o ditado, namorar não é pecado, se tiver com amor. Namora moça solteira e, as
casadas, conforme for. Casei direto mesmo. Como meu pai já tinha morrido,
não precisei de autorização.
Um dia, meu marido falou: “arrumei um serviço lá em Mariana,
cê vai comigo ou vai ficar aqui em Piranga?”. Não, meu fio, eu vou pra lá, uai. O que é que eu vou ficar fazendo aqui sem
você? Aí, juntei tudo que eu tinha, fui pra linha esperar o trem de ferro que
ligava Piranga à Mariana, despedi dos amigos e vim embora pra cá. Nessa época,
eu tinha uns vinte e poucos anos. Fui morar lá no Matadouro, que é muito longe
do centro da cidade.
Trabalhei em hotel e em muitos restaurantes: o de Sô Quim, o
do seu Zé de Souza, o do Jovelino... Cozinhava nesses lugares e lavava roupa
pros outros. Depois, comecei a tomar conta das pessoas de idade: cuidei de Dona
Violeta, ali na Rua Nova, durante muitos anos, até ela morrer. Olhei a Dona
Marta, Dona Inácia e Dona Ninita – que eram irmãs – Dona Ritinha do Santana,
Dona Odete... Foi muita gente mesmo que eu tomei conta, graças a Deus! Cuidei
de criança também, mas o povo antigo dava menos trabalho. Criança não para, os
velhos ficam quietos, é só dar banho, comida e remédio na hora certa e ter
paciência com eles. Os antigos não gostam muito de conversar, ficam mais
calados. Só a Dona Marta que gostava
muito de falar, ela me colocava pra cantar uma música esquisita, cheia de
palavra feia. Eu ficava na varanda e ela falava “Dionísia, vamos cantar aquela
música?”, eu não gostava, mas cantava pra dar gosto pra ela. A vergonha era tão
grande que eu ficava até meio escondida, mas ela batia tanta palma que eu
falava “Ô, Dona Marta, que música bonita! Que música bonita, Dona Marta” e ela
ficava toda alegre comigo.
As pessoas gostavam muito de mim porque eu era honesta.
Ganhava uma roupa velha ou outro trem
qualquer, mas tirar por conta própria, nunca tirei nada. Eu vou pegar uma coisa
sua e não vou falar nada? Não vou, não. É errado, uai. O que é meu é meu.
Ensino isso pros meus netos, falo
como é que eles devem andar. “Não mexe na sacola dos outros na escola, viu?”,
eu sempre falo pra eles porque é melhor prevenir.
Tive oito filhos. Dos oito, morreram a Maria, a Francisca, a
Lurdes e o Zé Geraldo. Morreram de bobeira, por causa da bebida. Mas, por
exemplo, se eu falo pra você “não passa aqui porque é meio perigoso”, o que é
que você tem que fazer? Dar a volta, não é? Mas eles não deram, aí, quando
foram se arrepender, já era tarde. Morreram de bobeira. Eu falava que bebida
não presta pra nada, só prejudica o organismo, beber pra que? Faz igual ieu que não vou na ilusão de qualquer
coisa. Mas não me ouviram.. Saíram de casa e morreram morando na rua.
Quando eu trabalhava, deixava os meninos na creche e buscava
de noite. Era difícil a luta, mas a gente tem que passar pela vida é alegre
porque tristeza acaba com a pessoa. Morava num barraco de pau a pique: já morei
no Matadouro, como eu disse, no Vamos-vamos, no Morro Santana e no Rosário. Quando
mudei pra essa casa onde eu tô agora,
chovia tudo aqui dentro, dava aquela enxurrada e molhava as coisas. Morei em
muitos lugares, mas o verdadeiro mesmo é esse de agora.
Eu ia trabalhando nas casas de família, ganhava roupa e
mantimentos. Às vezes, nem café os meninos tinham pra ir pra escola. Já sofri um pecado mesmo, mas nem gosto de
lembrar. Já passou mesmo, né? O
Laurides, meu primeiro marido, também ajudava em casa. Ele trabalhava
esvaziando caminhão de entrega no supermercado. De vez em quando, ele trazia um
pacote grande de comida misturada, que catava dos sacos que arrebentavam no
caminhão. Tem mulher que olharia aquilo tudo: feijão, macarrão, arroz, tudo
misturado, e falaria que não ia comer. Mas eu catava tudo – feijão prum lado, macarrão pro outro – lavava
tudo bem direitinho e colocava pra cozinhar. E ninguém morreu por isso, nem
nada. Quando ele chegava com o pacote, eu ficava com o coração humilhado, mas
fazia tudo e todo mundo comia bem nesse dia.
O Laurides morreu de tristeza. Ele tinha um patrão que
judiava muito dos empregados. Um dia, o Laurides me perguntou: “será que almoço
primeiro e só depois lavo o açougue?”, falei pra ele almoçar primeiro. Ele
almoçou e o patrão queimou o pé dele com ferro quente, desses de marcar gado. Pelo
atraso, o patrão fez essa covardia. O povo chamou a polícia, acho que passou
até na televisão. Ele ficou em casa, com o pé machucado, deitado na cama: “esse
tanto de filho pra tratar aí e eu sem poder ajudar”... e foi entristecendo com
aquilo e não aguentou, morreu de tristeza.
Casei de novo, com o João, porque solidão não presta, não, e
eu gosto de andar a vida toda alegre e cantando.
Amor é uma semente que
a gente planta pra colher
No coração da gente,
com a idade, vai nascer
Quem planta bem, colhe
bem
Quem planta mal, colhe
mal
Porque o amor é um
pecado original...
(Em meio à conversa, Dona Dionísia canta os versos)
O João era vigia, fazia ronda noturna. Era muito bom pra mim,
o meu véio. Um dia, eu estava tomando
conta da Dona Violeta, quando voltei pra casa, não encontrei ele em lugar
nenhum. “Ai meu Deus do céu! Aconteceu alguma coisa com o João”. Depois de um
tempo, a minha vizinha apareceu pra falar que tinha acontecido um acidente com
ele. O João ia pro serviço todo limpinho, mas, quando eu cheguei ao hospital,
ele estava todo sujo de poeira da mina onde ele trabalhava fazendo a ronda. “Dois
ladrão acabou comigo de noite, me
empurraram pra barranceira... custei a conseguir subir, Dionísia”, ele falou,
todo sujo. Pegamos um carro que apareceu por lá e fomos até à delegacia dar
queixa. O João recebeu alta e veio pra casa, mas ficou meio abobado. Bater na
cabeça é triste, né? E ele não
aguentou e morreu. Tão bom que o João era...
Meus dois maridos eram muito bons, mas sempre tem uma
tristeza pra atrapalhar. Na vida toda, sempre aparece uma coisa ruim, mas tá
bom assim mesmo. A vida é muito boa, depende da pessoa saber levar ela. O povo fala muito que o mundo
tá ruim. O mundo não tá ruim, não, as pessoas é que não sabem
andar por cima dele, mas o mundo? O mundo tá
é ótimo.
Quando fiquei viúva, encontrei muitas tentações: vinha à
noite e passava ali perto da igreja do São Pedro, olhava pra baixo e tinha um
precipício me cercando e, pra não correr o risco de nada, eu cascava pro outro lado. Tinham uns
homens no caminho que eu fazia pra voltar pra casa, sempre tarde da noite, eu
passava e eles diziam “ô, mulher difícil!”, sou difícil mesmo, eu respondia e
continuava andando. Graças a Deus!
A vida é muito boa. Tem hora, que eu fico recordando o meu
passado: pra quem não tinha nada, vivia na casa dos outros, às vezes, até aguentando
desaforos, hoje, está tudo muito bom. Quem quiser, pode vir até a minha casa e
vai encontrar o que comer e o que beber também. A gente vive é pros outros, não
é?
Quando eu morava na casinha de pau a pique, aqui nesse bairro
mesmo, ganhei um pedaço de terra. Passaram alguns dias, uma dona veio até a minha
casa e me pediu um pedaço dessa terra que eu ganhei. Ela queria construir um
barraco. Eu dei com o maior prazer porque é dando que se recebe. Enquanto o pessoal
dela construía tudo, eu ajudava a ajeitar as coisas, a olhar os meninos e a
lavar roupas. Quando o barraco dela estava prontinho, me chamou e disse que ia
construir um muro com tijolos, pra eu ficar de um lado e ela, de outro. Disse,
na minha frente, que, assim, uma não veria cara da outra. Quando ela me disse
isso, eu senti uma dor esquisita no meu coração, mas pensei que Deus num veio no mundo só pra um. Fiquei sem
graça, quietinha no meu barraco sem sair pra nada. Acordei sem graça no dia
seguinte e fiquei olhando a poeira que subia com o vento, pedi pra Deus livrar
todas as ilusões da minha vida, o meu coração estava triste mesmo. Nisso,
brilhou uma luz no meu caminho, passou um raio parecido com um relâmpago e eu
pensei “que luz é essa?”, não estava chovendo, nem nada, não passava carro, não
tinha ninguém na rua. Ouvi uma voz no meu ouvido, dizendo que Deus estava
comigo. Fiquei tão alegre que cantei a tarde toda. A minha casa estava caindo,
eu estava viúva. Mas, mesmo assim, fiquei feliz porque Deus apareceu pra mim,
porque Ele estava comigo. Não demorou muito e eu consegui fazer uma casa nova,
de tijolos, que é essa em que eu moro hoje. Por isso, falar que a vida tá ruim
é um pecado. Tudo tem o tempo certo: tem o tempo de colher pedra, tem o tempo
de espalhar pedra, tem o tempo de rir e o tempo de chorar. Tem tempo pra tudo.
Eu sou uma pessoa muito amorosa. Se todas as pessoas fossem
assim, não tinha nada de ruim nesse mundo. Não gosto de ver ninguém reclamar
nada, ninguém pode sofrer perto de mim. Se eu pudesse, limparia tudo de errado
que existe. Limparia tudo na hora mesmo. Às vezes, aparece alguém aqui em casa
com alguma dor, eu rezo pela pessoa e ela melhora. Outro dia, apareceu uma
mulher aqui que sofria de muita dor de cabeça, ela queria que eu ensinasse um
chá. Ensinei que folha ela pegaria e fiquei rezando pra ela, sem ela saber. Quando
chegou em casa, nem precisou do chá porque ela já estava curada! Mas isso tudo
é porque tem que confiar na vida e em Deus.
Não sei quantos anos eu tenho, se é 74, ou 87. Minha filha,
Elvira, olhou o documento e disse que eu tenho 88 anos. Estou pequenina ainda,
não estou? Vivo trabalhando até hoje e, todos os dias, agradeço por tudo que eu
tenho, porque, antes, eu não tinha nada. Sou viúva duas vezes, sim. Mas outro
dia, apareceu um véio aí querendo
casar comigo. Eu não sei se quero, não sei se não quero, estou assim: meio cá,
meio lá. Mas a solidão não é coisa boa. Você ter alguém pra acompanhar na
igreja e cuidar de você é ótimo. E, pra isso, eu sou muito boa: não deixo o véio passar fome, nem sede, não deixo
andar sujo. Comigo, é tudo muito certo. Mas tem que me acompanhar na igreja,
senão, como vai ser? Assim, não pode. Dois cabritos não bebem água na mesma
cumbuca, não, porque o chifre é grande! Então, tem que ir comigo à igreja. Esse
véio que apareceu e quer casar comigo
trabalha de ronda, como o João, meu último marido que morreu. Ronda é muito
perigoso. Só disso que não gostei.
Hoje, sou aposentada. Meu patrão, o filho da Dona Violeta, de
quem eu tomava conta, me ajudou a pagar o INPS. Agradeço a alma dele todo dia. “Ô,
Dona Dionísia, vou ajudar a senhora a pagar o INPS, viu? Porque, assim, quando
a senhora sair daqui, vai ter um ganhozinho”. Obrigada, Sô Hélio, Deus abençoe
o senhor e a sua família! O meu velho que morreu também deixou um cadim pra mim... e vivo assim: em pé,
sem cair, deitada, sem dormir!
Ainda vou conseguir mais vitórias porque a vida é muito boa.
O mundo tá muito bom, não quero morrer agora, não. Quero muita vida. Vida com
saúde! Quero fazer uma área aqui em casa, mas nunca que ela sai. A gente não
ter uma pessoa pra ajudar é muito ruim. Tenho meus filhos, mas eles pouco ligam
pra isso. Meu filho, Marco Aurélio, trabalha em um negócio. O Zé, meu outro
menino, trabalha catando papelão lá na rua. Ele mexe muito com esses ‘troços’
de poesia também, já escreveu até no jornal. A Elvira mora aqui em casa, na
parte de baixo. Não sei quantos netos eu tenho, mas são muitos! Não lembro o
nome deles, mas fico de olho em todos porque não gosto de ver ninguém
maltratado, ninguém sofrendo. Tenho vontade de voltar pra roça, mas só se eu
arrumar um véio pra ir comigo. Eu
iria feliz, plantar e criar galinha. Roça é uma beleza e eu gosto muito de ‘criação’.
Quem sabe ainda não vou, né? Às vezes... quem é que sabe?
Menina dos dentes claro
Parece canjica grossa
Me dá seu braço, morena
Me leva pra sua roça?
(Em meio à conversa, Dona Dionísia canta os versos)
Acordo, todos os dias, às 8h, porque já levantei muito cedo
nessa vida. Hoje, não preciso mais. De vez em quando, vou ao centro da cidade,
a pé mesmo. Pra voltar, venho de ônibus porque o morro é comprido, é muito
longe. Aos sábados, às vezes, vou à Igreja. A igreja tira as tristezas do
coração da gente, parece que o que eles leem lá foi escrito pra mim e, por
isso, eu volto pra casa satisfeita. Não saio muito daqui, nunca viajei. Já fui
visitar meus irmãos que moram nos asilos em Lafayete e em Ouro Branco. Eles
nunca vêm me ver, só eu vou lá. E, olha bem: eles têm carro, podiam vir. Mas
nunca vêm.
Meu divertimento é cantar. Eu não sei ler, como eu já contei,
mas as palavras vêm assim na minha cabeça e eu canto. A cada dia, canto uma
coisa nova. O tempo que tô cantando
ou na igreja é o tempo feliz.
Por causa dessas coisas que eu canto, essas histórias e
poesias, veio um rapaz aqui me gravar. Cantei um pouquinho e, quando fui ver,
eu estava aparecendo na televisão. Pensa bem: ieu na televisão. “Ai, Dionísia, cê não tá fácil, não!”. Acho que passou e todo mundo viu, não sei. Você
não chegou a me ver, não? Apareci lavando vasilhas e cantando, bem ali dentro da
televisão.
Ainda lavo, passo e cozinho todos os dias. Não consigo ficar
parada. Os antigos já diziam: “Deus no céu, trabalho na terra e dinheiro no
bolso”. Tenho saudade dos meus irmãos e do tempo em que eu trabalhava com a
enxada, apanhando café ou cortando cana. Era muita luta, mas eu cantava o tempo
todo. Medo, não tenho nenhum. Só dessas pessoas que andam por aí fazendo
maldade. Mas o mundo é muito bom, não tenho do que reclamar. Já estou feliz
demais, só de você estar aqui. Tenho muito medo de avião também, não entro em
um desses por nada porque dá medo demais, nem pra conhecer a praia, eu entro.
Se eu tinha vontade de ver o mar? Uai, eu ainda tenho!