sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A sociedade dos sem-nome


Antônio Camino sempre foi um homem de negócios. Passou grande parte da infância e da juventude vendendo e comprando objetos. Era especialista em trapaças. Antônio Camino é o mais esperto da família. Orgulho do pai, preocupação constante da mãe. 

Aos 34 anos, Antônio decidiu que queria ser prefeito da sua cidade. Para não ser prejudicado por sua má fama de trapaceiro, Antônio resolveu criar um novo tipo de campanha: a campanha do sem-nome. 

Contratou o melhor assessor de imprensa da região e, juntos, fizeram o discurso genial que seria a base de toda sua trajetória política: com uma máscara no rosto, Antônio subiria aos palanques para dizer que o seu objetivo principal era fazer o bem para o povo e que, por isso, preferia ter sua identidade verdadeira preservada. 
Um ato de um altruísmo tão bonito, tão parecido com os heróis dos filmes de faroeste ou dos personagens que, com uma única letra, são conhecidos por fazerem o bem e lutarem por justiça. Perfeito! Antônio – agora, o Sem-nome – não tardou a conquistar toda a população.

No dia 31 de outubro, centenas de pessoas saíram de suas casas para votar em Sem-nome. Na urna, nenhum retrato de quem acabou se tornando o prefeito mais votado da cidade. Sem-nome continuou fazendo suas trapaças, desviou verbas, diminuiu salários... Mas aquele seu discurso tão bonito e o orgulho de ter um prefeito mascarado faziam as pessoas o admirarem, mesmo que a cidade não estivesse tão boa assim.

Antônio, o Sem-nome, sentia-se genial. Como ninguém nunca havia pensado nisso? Afinal, não precisar mostrar o rosto, não ter um nome, não explicitar uma identidade são decisões perfeitas! É menos perigoso... ele não corria o risco de ser criticado (poderiam criticar o Sem-nome, não ele, de fato), poderia falar e fazer o que quisesse sem assumir nenhuma responsabilidade.
Um ato mais covarde do que nobre, concordava. E valia tanto a pena esconder seus maus feitos! Sua decisão, portanto, era, no mínimo, inteligentíssima.

Passados os quatro anos, Sem-nome decidiu que queria se re-eleger. Mas o povo já não estava tão contente assim... além disso, estavam todos curiosíssimos para conhecer o rosto do prefeito mascarado. Pronto! O povo só votaria em Sem-nome se ele mostrasse seu rosto, se dissesse seu nome. 

Sem-nome ficou desesperado! Ninguém votaria nele se soubesse quem ele escondia por trás da máscara. Sem-nome e seu assessor passaram dias a fio tentando encontrar uma solução. O jeito foi criar um meio de fazer a campanha sem estar presente, sem mostrar rosto ou máscara. Sem nem precisar chegar perto do povo – ufa!

Após dias,  encontraram a saída perfeita. Sem-nome faria uma campanha virtual, um mandato virtual, seria uma pessoa virtual. 

E, assim surgiram a sociedade dos sem-nome, a internet e a sua possibilidade de não precisar olhar nos olhos.





quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Tênis novos: o drama de um saudosista


Antes, eram vermelhos. Agora, estão com uma cor diferente - meio amarela, meio suja. Três buracos na sola, a frente está rasgada. Não dá mais pra sair com eles sem voltar com as meias imundas da sujeira que entra pelos buraquinhos. Depois de anos de companheirismo, é chegado o momento: a hora de aposentar os tênis. 


Parece até uma traição, simplesmente largá-los em um canto. Afinal, eles estavam na prova do vestibular, no primeiro dia de aula na Universidade, no show do Tom Zé. Assistiram à primeira vez que saiu um acorde com som bonito no violão, à primeira entrevista com alguém importante. Aprenderam a difícil missão de não mais confundir freio e acelerador do fusquinha. Estavam no primeiro e no último encontro. E, agora, não irão mais a nenhum lugar. Aposentados, sem direito a fundo de garantia ou a uma despedida decente – brasileiros que são. 


Com um drama de consciência um tanto quanto irracional, os tênis substitutos são escolhidos. Não se fabrica mais nenhum vermelho, como os antigos, mas os azuis também são bonitos. É hora de inovar, afinal. Cadarços amarrados, saem os novos tênis a andar por aí, com aquela curiosidade de quem sai do berçário. São bem bonitos, concordo. Mas os vermelhos... 


A forma nova aperta os pés. O dia inteiro, aquele aperto. Os antigos, não. De tão discretos, davam a impressão de que os pés estavam descalços. Além disso, azul não é cor pra estar nos pés. Azul é cor de blusa, de jeans, não de tênis. E eles apertam. Não são como os  vermelhos. 


Por que os tênis não são imortais?  Jamais existirá uma geração de tênis tão boa quanto a dos vermelhos. Definitivamente, não deveria ter trocado de tênis. Talvez houvesse uma forma de consertar os antigos. Costurar um canto, colar a sola. Qualquer coisa.


Passam um, dois, três anos. Os tênis azuis já não estão mais na moda. Ninguém mais usa tênis azuis. Mas, como? Eles são tão bonitos... lembram o céu. E, agora, já nem doem mais os pés. Não há possibilidade alguma de trocá-los por uns desses novos, os pretos. Preto não é cor. Preto é triste. Vai ver, preto é o novo símbolo da contemporaneidade: triste. Mas os azuis... 


Antes, eram azuis. Agora, estão com uma cor diferente - meio cinza, meio encardida. Três buracos na sola, a frente está rasgada. Não dá mais pra sair com eles sem voltar com as meias imundas da sujeira que entra pelos buraquinhos. Depois de anos de companheirismo, é chegado o momento: a hora de aposentar os tênis. 


Por que os tênis não são imortais?  Jamais existirá uma geração de tênis tão boa quanto a dos azuis. Esses pretos apertam os meus pés.

sábado, 21 de janeiro de 2012

O dia em que acordei inteligente



2012 é um ano, no mínimo, misterioso. Não se sabe se é o fim dos tempos, se é o fim da internet livre, se é o começo de uma guerra virtual, se faz chuva, se há seca. Ou, se é, simplesmente, mais um ano, desses assim com trezentos e sessenta e poucos dias e um fevereiro.
Fruto ou não do magnetismo incomum que os estudiosos atribuem a 2012, eis que um dia estranhíssimo me aconteceu: O DIA EM QUE ACORDEI INTELIGENTE.

Já era bem tarde quando resolvi me levantar da cama, afinal, não havia nada nesse mundo para aprender, eu já sabia de tudo, muito. Fui até a cozinha, peguei uma vasilha dessas gigantes de pipoca e me sentei em frente à televisão. Procurei o canal menos repetitivo para mim – que, repito, acordei inteligente. Resolvi parar em um desses programas de compra e venda e, assim, com os olhos fixos naqueles produtos todos, que eu, claro, já conhecia, passei a manhã.

Resolvi ir à rua. Não falei com ninguém no trajeto entre a minha casa e a praça, afinal, quando a gente acorda assim inteligente além da conta, não escuta ninguém. O inteligente, paradoxalmente, não sabe ouvir. Encontrei uns amigos e não os cumprimentei, eu até queria, mas não consegui descer do meu novo patamar – o de inteligente – e trocar meia dúzia de palavras tolas com eles.

Voltei pra casa. Não havia nenhuma música inteligente o bastante que combinasse com o meu humor. Livros? Não, nem pensar. Não existia nada nos livros que eu já não soubesse, afinal, acordei inteligente.

Liguei o computador e dei uma voltinha virtual nas redes sociais. O facebook continuava cheio das imagens com coisas que eu já conhecia, os assuntos todos que circulavam entre as pessoas não chegavam aos pés da minha inteligência espetacular, até as cutucadas – antes, tão engraçadas – me pareciam um ato extremo de burrice e falta de engajamento intelectual.

Twitter. Twitter era a solução. Afinal, é genial conseguir resumir toda uma indignação, uma ideia nova, uma letra de música que seja, em 140 caracteres. Mas não adiantou. Os tópicos “em alta” não me despertaram nenhum interesse. Os menos inteligentes que eu continuavam com suas séries de repetições sem graça, com seus comentários infundados, com seu humor patético. Afinal, repito, eu acordei muito inteligente.

Abri a minha janela e logo senti aquele bafo quente da burrice do povo nas ruas chegando até mim. Fechei, desesperada. Voltei à TV para ouvir as notícias do dia. Inteligente que estava, achei tudo de péssimo gosto. Uma linguagem tão próxima com suas frases curtas e pirâmides ocidentais. Terrível. Até que ouvi uma meia dúzia de opiniões que quase – repito, quase – conseguiram aproximar-se da minha inteligência.

Nisso, me lembrei que sou estudante de jornalismo. Mas, para que voltar à Universidade se acordei tão inteligente assim? Pensei que, obviamente, é preciso ser inteligente para atuar nessa e em qualquer outra profissão. Mas não, eu não havia acordado assim inteligente de um jeito normal, estava numa inteligência quase norte-americana de tão extraordinária. Então, pela primeira vez, fiquei super aliviada de terem acabado com essa história de diploma. Ufa!

Fiquei pensando em como meu futuro seria brilhante! Não precisaria mais ler as dezenas de livros como fazia antes, nem ir às aulas, nem assistir à TV, nem navegar na internet. Ouvir a opinião dos outros? Nunca mais. Adeus, adeus, humildade burrica. Eu era inteligente além da conta.

Comecei a ficar triste... Que graça teria, então, ser tão inteligente assim? Eu não sentiria aquela sensação boa de aprender algo novo nunca mais? Usaria uma viseira, semelhante a dos animais, que me impediria de olhar pro lado para sempre? Isso era terrível. Um desespero inteligente se apossou de mim. E não dava nem pra distrair com um poeminha do Neruda ou com um desenho do Ziraldo porque eu estava mesmo muito inteligente e não achava graça neles. Assim, triste, triste, dormi.

Quando acordei, já estava de manhã. Olhei pros quadros na minha parede, pros livros na minha estante, pros vinis que coleciono e me deu aquela sensação gostosa de ignorante. Ignorante no sentido daquele que ignora, que não tem conhecimento. Sensação gostosa? É. Saber tudo é muito chato, a gente nem pode errar.

Me vesti feliz e fui encontrar os normais que fazem o mundo. Ufa. Ainda bem que meu pesadelo durou só um dia. O dia que acordei inteligente.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Futility Show!


No dicionário: s. f.  Caráter, natureza daquilo que é fútil. Coisa fútil. Coisa de pouca importância.

Pronto. Está aí o significado irrefutável no chamado “pai dos burros”. Mas não é só lá que a palavra futilidade se encontra. Hoje, em meio aos discursos na democratissíssima internet, ela está mais na moda que o cabelo do jogador Neymar (percebam: estou dizendo CABELO e não cabeça). 

De repente, todos se viram no direito de erguer ao máximo o indicador da mão direita e colocá-lo no nariz mais próximo, gritando com uma revolta sem tamanho: FÚTIL!

Você ouve as músicas “pops”, dessas que tocam em programas populares de TV e em festas pelas ruas? Curte um sertanejo universitário no fim de semana? Não me diga que você comete o a-b-s-u-r-d-o de cantar junto com o Michel Teló? Ah, que pecado! VOCÊ É FÚTIL. 

Mas você aí que está com esse sorrisinho orgulhoso do seu bom gosto, não fique feliz: ouve Chico Buarque, Novos Baianos, Samba de raiz? Se orgulha de saber de cor e salteado a discografia do Vinicius de Moraes? Tem uma foto dos Beatles na parede do seu quarto? VOCÊ É FUTIL TAMBÉM! Não importa se você gosta disso desde criancinha: o indicador supremo de toda a verdade dirá que você só faz isso para satisfazer o seu ego de pseudo-intelectual. 

O indicador de futilidade também não perdoa os amantes do cinema nacional. Pensa bem: quem é que pode gostar REALMENTE de ver brasileiros gente-como-a-gente na TV? Impossível. Portanto, se você passa suas tardes de olho na Tv Brasil, VOCÊ É FÚTIL! Se você chama cinema de “a sétima arte” então, meu amigo, quanta futilidade você possui!

O dedinho vira-folha não para por aí: pensa que está livre por saber tudo sobre as séries americanas? Por ter uma foto do vampiro adolescente como fundo de tela do seu computador ou por amar Harry Potter desde que aprendeu a falar? Nada disso, VOCÊ É FÚTIL também.    

Bem, e os livros? Se você possui esse hábito horroroso – o de ler: VOCÊ É FÚTIL. Se suas leituras preferidas passarem longe dos Best-sellers da revista Veja então, nem se fala! Mas se você sonha com um livro autografado do Caio Fernando... Ah, VOCÊ TAMBÉM É FÚTIL

Eu também tenho um dedo indicador. Ele é desses revoltados com quem troca sua cultura nacional pela estrangeira – ainda que estejamos em tempos (há tempos) de globalização, ou com quem canta um funk cheio de glúteos, ou corre para assistir 16 (ou 14?) pessoas enfiadas em um carro no horário nobre. No entanto, tenho outros nove dedos menos imbecis. 

Mais que isso, tenho dois dedões pra fazer um “jóia” (assim, careta mesmo) pra todos vocês que não são fúteis o bastante para dizer que os outros o são.
Não importa se você cita Nietzsche ou sua vizinha, não importa se você assiste “Roda Viva” ou Big Brother, se você ouve Latino ou música clássica. Se você faz isso com toda a verdade que possui, para mim, (ou pelo menos para os meus nove dedos) você não é fútil.

Fútil, mas fútil MESMO, é quem possui dez indicadores mandões nos dedos das mãos, incapazes de perceber que a pluralidade de gostos é tão rica quanto perigosa. E que tem gente que não se importa em parecer erudito, inteligente, burro ou popular.

Atenção, futility show, HÁ QUEM GOSTE APENAS POR GOSTAR.
Abraços, meus heróis.