quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Só que ao contrário



Hoje acordei e pensei em abrir a janela, aí me lembrei que o meu quarto não tem janela. O meu quarto tem porta. Duas portas. Ter um quarto sem janelas influencia diretamente o ser humano que você se torna. Reparem: em vez de abrir a janela de manhã, abro a porta! E porta é o lugar que o mundo entra, então, todos os dias, abro a porta para o mundo.

Pois bem, voltemos ao início do dia. Como já disse, acordei e abri a porta. Nisso, vi um céu azul tão bonito que torna clichê escrever sobre ele. Vi pessoas tranqüilas, olhando o dia enquanto bocejavam a preguiça boa em acordar cedo. Reparei que estavam todos a pé. Não vi nenhum carro, nenhuma moto, não ouvi buzinas, nem apitos de guarda de trânsito. Assim foi a primeira impressão do meu dia. Só que ao contrário.


Enquanto ia para o trabalho, respondi aos cumprimentos animados das pessoas que também iam trabalhar. As mães que levavam os filhos pequenos para aula pareciam ter saído de uma daquelas propagandas de Sazon, de tão felizes que estavam. Os universitários estavam todos acordados, sem ressaca nenhuma, animados em estagiar e depois almoçar em conjunto no bandejão. Assim foi a minha segunda impressão do dia. Só que ao contrário.


Abri um jornal e vi notícias de todo o Brasil. A presidenta resolveu ouvir às greves todas e os trabalhadores estavam felizes, segurando uma estrelinha do PT como nos tempos do Henfil... Os bancos voltaram a funcionar e havia filas enormes! Todos estavam querendo sacar os impostos devolvidos ao povo por falta de uso. Vi isso tudo no jornal. Aí senti um orgulho tão grande em poder ser jornalista. Só que ao contrário.


Orgulhosa da minha futura profissão, liguei a TV. Vi o jornal Hoje antes de ir pra aula. Ouvi o Evaristo denunciando  centenas de equívocos e trapaças no interior do país. Fui para aula e encontrei um monte de pessoas interessadas no curso e no mundo. Tive discussões interessantíssimas, dignas do “superior” que nomeia o ensino. Tudo isso me aconteceu. Só que ao contrário.


Ao ir pra casa, encontrei outros tantos com o mesmo objetivo. Foi bom pensar que todo mundo vê no seu lar um ambiente de paz... A palavra casa ainda é boa pra muita gente. Só que ao contrário.


Ver isso tudo, essa realidade tão boa, me tirou até a vontade de lutar por melhorias. Está tudo tão bonito que me senti livre de reivindicar algo. Senti um alívio, agora posso assistir a minha TV por assinatura sem peso na consciência. Posso deixar de comer sem pensar que tem gente por aí que não come. Posso faltar às aulas e parar de ler os autores que me tornariam mais crítica. Posso deixar de assistir ao Gláuber e ver uma comédia romântica. Posso ler o Henfil e pensar que o trabalho dele já não serve mais. Posso deixar de ser jovem e curtir a minha aposentadoria precoce que a perfeição que vi na minha porta me deu de presente. Posso sentir isso tudo. Só que ao contrário.


Por fim, fechei a porta para dormir. Aí reparei que não é o meu dia que esteve ao contrário, mas o mundo que há tempos está. E todo mundo vê e se revolta.

Só que ao contrário.

2 comentários:

  1. Jah, incrível essa crônica! Sabe quando vc lê uma coisa e a consciência despenca no chão de tão pesada? Pois é, foi assim. Suas críticas super pertinentes serviram como uma luva p/ esse 'mundo ao contrário' q vivemos. Continue com o blog, show de bola querida! Beijo grande-e sempre com saudades, Yara.

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  2. Ei, Yara! Que bom que você gostou! Melhor ainda que veio ler a minha crônica! Continue vindo então! Todo dia terá uma nova! Beijo e MUITA saudade de você!

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