¹ Artigo publicado no caderno "Pensar", do jornal Estado de Minas, em 2 de fevereiro de 2013.
Em tempos de Comissão da Verdade – quando o Estado brasileiro toma para si a tarefa de clarear os cantos escuros da ditadura militar –, é difícil não recordar o traço rebelado e atrevido de Henfil. O lápis e o nanquim que palpitavam em tudo: nos rumos da política e da economia, nos cenários de desigualdade, no comportamento de homens e mulheres a quem acusava dessa ou daquela atitude. Ou da falta dela. Pois em 4 de janeiro o calendário marcou 25 anos sem ele. Para as gerações que o cartunista não cutucou, não provocou ou não tirou do sério, resta uma espécie de vácuo: Henfil passou feito um cometa – quem não viu perdeu.
Henrique de Souza Filho, Henfil. |
Mineiríssimo, nasceu Henrique de Souza Filho, na cidade de Ribeirão das Neves, no mês de fevereiro. Se estivesse vivo, faria, na terça-feira, 69 anos (que certamente celebraria com uma piada obscena). Aos 20 anos, já era cartunista na Revista Alterosa. Dali saltaria para outros segmentos da imprensa, como o Jornal do Brasil, o Jornal dos Sports, Jornal da Tarde, Correio da Manhã, Intervalo e as revistas Isto É, Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro. Também brindou, com sua irreverência, um dos mais importantes jornais da imprensa alternativa, O Pasquim. Sem falar do cinema (com o filme Tanga, deu no New York Times) e da televisão (com o programa TV Mulher, da Rede Globo). Hemofílico, morreu em 1988, vitimado pela Aids (contraída por meio de uma transfusão de sangue), depois de brigar feroz e obcecadamente pelo fim do regime militar, da tortura, dos exílios, pela democracia, pelo voto direto, pelo fim da fome e da miséria, pela educação, pelo direito à vida – mas não a qualquer vida. Só valia a vida digna.
Cartunista, quadrinista, escritor e jornalista, Henfil era dessas figuras que militam incansavelmente, cansando aqueles que se recusavam a pensar em liberdade. Atribuía a seu próprio desenho (e também à própria escrita) a marca de um jornalismo socialmente engajado, que se ocupava da crítica social, política e cultural. Não por mero acaso, chegou a integrar o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, como suplente, e a Associação Brasileira de Imprensa, como vogal. Nos anos 70, participou ativamente do movimento grevista dos jornalistas e, segundo o ex-presidente do sindicato da categoria em São Paulo Audálio Dantas, queria “comer o fígado” dos donos de jornais. Mais tarde, reuniria desenhistas como Laerte, Nilson, Chico Caruso, Paulo Caruso e Angeli para integrar a Oboré, a pequena empresa de comunicação criada para divulgar os movimentos de resistência ao governo e as injustiças praticadas pelo regime contra as bases operárias do ABC paulista. A partir dos quadrinhos – e sem receber por isso – o grupo de cartunistas dedicou-se à conscientização política dos operários.
Adepto da palavra e do desenho capazes de traduzir, Henfil se empenhava para ser compreendido pelas classes populares, e não apenas pelos intelectuais. Queria provocar reflexão, indignação e, a partir daí, ação. “O humor pelo humor é sofisticação, é frescura”, bradava aos amigos, explicando que, para ser levado a sério, o humorismo deveria ser “jornalístico, engajado, quente”. E sofrido – faltou dizer. Henfil fazia rir, mas também fazia doer. Foi assim, por exemplo, quando a Graúna, personagem mais famosa da Turma da Caatinga, revelou os três mitos alimentados pelos brasileiros nas regiões castigadas pela seca: Papai Noel, cegonha e leite. Ou quando ela se gaba a outros dois personagens (o cangaceiro Zeferino e o Bode Orelana) de pertencer a um lugar como a caatinga, “a maior exportadora de crianças para o céu”.
As histórias da caatinga tomavam o Nordeste como metáfora dos mais pobres. Nos desenhos, um outro social ganhava rosto através dos personagens e mostrava aos brasileiros a cara do analfabetismo, da mortalidade infantil, da seca e da fome. Era assim que os desenhos burlavam a censura à imprensa imposta pelo regime, denunciando problemas que acometiam grande parte dos brasileiros. Marcados por uma ironia aguçada, os traços questionavam o poder público e a reação – ou não reação – das pessoas. Cada personagem era uma frente de batalha: os fradinhos Baixim e Cumprido, inspirados nos frades dominicanos de Belo Horizonte, questionavam, num humor ácido e direto, o comportamento de uma sociedade apática, por vezes cúmplice. Estavam lá, nos diálogos entre os frades, as críticas mais ferrenhas aos preconceitos raciais e de gênero, ao poder público e seu descaso para com as classes mais pobres e, sobretudo, às contradições da Igreja Católica como instituição de fé. Sempre rebelde O traço e a palavra faziam as vezes de espada num cenário que não oferecia tréguas.
A campanha pela anistia aos exilados políticos é outro bom exemplo. Tema recorrente nos quadrinhos e textos de Henfil, o movimento, iniciado em São Paulo, tentava fazer com que o governo militar cessasse as perseguições aos condenados por crimes políticos, acusados de manifestações e ações contra a ditadura. Nesse caso específico, a luta de Henfil sustentava-se no sentimento de solidariedade aos brasileiros perseguidos, mas sobretudo na situação do próprio irmão – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também exilado. A luta de Henfil dava, assim, contornos singulares aos sentimentos de muitas famílias separadas de entes queridos, forçados ao exílio. Famílias que, ao fim e ao cabo, só faziam representar o Brasil que sonhava com a “volta do irmão do Henfil”, como rezavam, na voz de Elis, os versos da canção O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Para o cartunista Nilson, a campanha pela anistia não teria a mesma força sem as Cartas da Mãe – aquelas que Henfil escrevia à mãe, dona Maria, e que, naquele período, eram publicadas semanalmente pela revista Isto É. Argumenta que elas davam um rosto a cada exilado. “Os 10 mil exilados, que ninguém sabia que existiam, fora os mais conscientizados, de repente tinham uma cara: era o Betinho, o filho da dona Maria”, avalia o desenhista em depoimento a Dênis de Moraes, autor da biografia do cartunista, O rebelde do traço, lançado pela editora José Olympio em 1996.
Naqueles anos, Henfil dedicou-se inteiro à campanha pela anistia. Segundo Dênis de Moraes, ele produziu desenhos para comitês de anistia, compareceu a uma série de atos públicos, fez questão de assinar manifestos pela “anistia ampla, geral e irrestrita”. Esse empenho, tão direcionado aos direitos humanos, chamou a atenção do núcleo mineiro do Comitê Brasileiro pela Anistia, que chegou a conceder ao cartunista, em abril de 1979, a Medalha Vladimir Herzog.
Sim, é bastante provável que as histórias contadas por Henfil – pelo traço ou pelo texto – sejam calcadas em utopias, todas elas inspiradas em desejos e sonhos de cidadãos de outro tempo e lugar. Mas talvez por isso também estejam tão presentes nas ideias que deram corpo à Comissão da Verdade. Porque uma boa história não se limita à arte da narrativa. A boa história permite mudanças, possibilita novos desfechos, inaugura novos rumos. Até que se anuncie um novo tempo.
Por Hila Rodrigues e Jamylle Mol