O
Henfil tinha raiva da morte.
A
minha irmã salva cachorros de rua.
Minha mãe
levou a poesia de Vinicius para o bairro mais pobre da cidade.
Três
orações. Três sujeitos. Singulares.
“Eles
não estão preparados para votar”. “Eles não sabem o que é cultura”. “É distribuir
pérolas aos porcos!”. Em um mundo em que fortalecer a própria voz é a ordem do
dia, um canto de vozes desafina os bons modos. Tortos, definem o que é o culto
e o que não é. Oculto, o preconceito preguiçoso que aceita as contradições do
lado de lá. Um muro invisível, pré-combinado, que impede a mudança. Impede o
conjunto. Define a massa.
A
poesia de Vinicius de Moraes subiu o morro, bateu na porta da escola construída
entre barrancos. Chegou cansada, tímida ao ver aqueles tantos olhos das
crianças que a esperavam. Mas poesia é poesia! Ela não reparou nas roupas
simples, nos atos simples, nas meninas simples. Entrou com tudo, como se
estivesse nos palanques bonitos das Universidades ou nas casas de quem não anda
de ônibus, não gasta o sapato...
Minha
mãe levou poesia para o bairro mais pobre da cidade. Agora, quem nem desconfiava
dos lirismos dessa vida, canta a garota de Ipanema.
Outro
dia, um homem arrastou seu cão enquanto dirigia o carro. Ontem, vi uma senhora
dividindo um pão entre suas três crianças e um filhote. Enquanto isso, a cidade
grande que movimenta economias nunca para. É um eterno entrar e sair de casas,
de trânsitos, de lojas. As pessoas estão sempre correndo: é preciso entrar em
forma, afinal. Não se vêem os bueiros com seus ratos, as esquinas com suas
mulheres, não se vêem os cães. Mas a minha irmã salva cachorros de rua. Agora, da
estrada em que estão também os ocupados no seu próprio correr, ela ganhou mais
dois olhos para correr junto. A minha irmã salva a rua dos cachorros? Não. A
minha irmã salva os cachorros de rua.
Sorte
e Morte. Entre rimas, razão. O Henfil tinha raiva da morte. Da dele, dos
meninos que comiam farinha, da solidariedade. Morte é fim e todo fim é uma espécie
de sorte. O intervalo é chance. Oportunidade de temer o desfecho e agir, de
levar poesias para o bairro mais pobre da cidade, de salvar cachorros de rua...
A
poesia levou a minha mãe para o bairro mais pobre da cidade.
O
cachorro salvou a rua da minha irmã.
A raiva
da morte me dá medo do Henfil.
A
singularidade dos sujeitos fez três orações. E eu as rezo, pacificamente ativa.
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