- “Toma, doutora, coloca no som que às vezes funciona”,
disse o senhor, não muito novo, não muito velho, limpando o CD na roupa suja.
- “Toma, doutora, às vezes funciona”.
Noite fria, dessas que fazem as
pessoas desistirem de sair de casa. No alto da ladeira, entre as montanhas
todas e gerais, aquela neblina baixa, paradoxalmente clara numa madrugada tão
escura. Cansaço de um dia inteiro, de um mundo nas costas, de um trabalho bem
feito e diversão merecida. Cansaço.
Uma voz embriagada de álcool e
vida aparece entre passos confusos, se equilibrando sobre o meio fio como na
música do João Bosco. Um homem e as suas roupas sujas, suas mãos sujas, seu
rosto sujo começa a contar a sua história. Trabalhou ali e não trabalha mais. Tem
fome. Mora longe e não sabe como chegar. Não tem dinheiro nem para ir a pé. Embriagado.
A narrativa é boa, meio Almodovar, meio Hitchcock. Se a história não é alegre,
as músicas cantaroladas entre as frases dão graça à conversa unilateral.
- “Acho que meu ônibus não passa
aqui, não.” E se põe a olhar para o lado, esperando o ônibus que não virá:
acostumado.
- “Dá uma ajuda aí? Um passe?
Uma moeda?”. Coisa dessas que fazem a bochecha da gente se avermelhar de
vergonha por não saber o que dizer ou fazer. Neblina de Ouro Preto. Moeda na
mochila e um aperto de mão.
- “Pro senhor ir embora, heim?
Juizo.” E Deus, os céus e o que mais existe entram no assunto, incumbidos de retribuir em dobro o mínimo que se fez.
- “Óh, não queria falar, não.
Mas eu sou da polícia e vim prender vocês. É, sim. Eu sou da polícia militar,
da pátria amada”. Para comprovar o cargo imaginário, o homem – com as moedas
guardadas no bolso – começa a cantar o hino nacional, em pose de gala, mão no
peito, a olhar para o céu. Continência. Rio. Rimos.
- “Vim prender vocês, sim. Mas
vou embora porque meu ônibus não passa aqui. Tenho que descer longe. Sou da
Polícia.”
Outro aperto de mão, uma ou duas
cantarolas, uma frase engraçada e um pé-sobre-pé infindável, sem equilíbrio. Lento,
o homem-pátria se distancia, olhando para trás em todo trocar de passos bem
sucedidos. Acenos de mãos como se fôssemos velhos amigos.
Já longe, ele para e olha
fixamente para o chão, se abaixa, recolhe algo caído. E, se esquecendo do tanto
que havia para caminhar, faz o caminho de volta. Chega perto, meio tímido, meio
polícia-militar, e estende a mão:
- “Toma, doutora, coloca no som que às vezes funciona”,
disse o senhor, não muito novo, não muito velho, limpando o CD na roupa suja.
- “Toma, doutora, às vezes funciona”.
Presente aceito, o homem se vira
em direção à ladeira, satisfeito por ter retribuído a ajuda que recebeu. “Às
vezes funciona...”, vai repetindo.
E, assim, entendemos que o
senhor – não muito novo, não muito velho – veio mesmo nos prender, não como polícia,
como nos disse, mas como gente dessas que dá o mínimo que tem.
Terminamos a noite. Cativos.