terça-feira, 29 de novembro de 2011

Urgente: a miséria em extinção!


“Francisco Ferreira de Souza, o Xico, com x. 

Na certidão amassada, embrulhada na bolsinha vermelha de propaganda eleitoral, marcam-se 12 anos de idade. Xico é mineiro, nascido em São João das Missões.
Começou a trabalhar aos quatro anos, capinando pastagens, como o pai. É o mais velho dos oito irmãos.
Cabelo preto, liso, olhos puxados, magrelo. Xico, meio índio, nunca foi à escola. Mas disseram que a merenda é boa, tem até macarrão!
Mas Xico não tem tempo de andar os treze quilômetros para chegar até a escola. Carrega todo o peso de se ter doze anos em São João das Missões. 

Pereta, o cachorro.  Quatro anos de simpatia. Magrelo, como o dono. 

Xico e Pereta são dois brasileiros. Tiveram o azar de nascer na cidade mais pobre de Minas Gerais. Tiveram o azar de nascer num país tão rico quanto desigual. Tiveram o azar de nascer numa época em que a miséria está fora de pauta. Nasceram.

Xico e Pereta nem desconfiam que são problemas sociais, que são temas dos artigos científicos de universitários empenhados, que viram música do prêmio do ano do Faustão, que estão no discurso, tão bonito, dos candidatos.
Xico não sabe que existem enlatados, não está preocupado com as mídias sociais ou com a organização da copa do mundo no Brasil. A expectativa de vida de Xico é de 27 anos.  E ele está, como todos,  no século XXI.

A casa de Xico não tem luz, esse ano, de novo, não terá pisca-pisca na árvore de Natal.” 

A história de Xico, com todas as suas 'magrelezas', barrigas vazias e árvores de Natal sem pisca-pisca, é tão clichê. Piegas. Lugar-comum. Ai, que incômodo que é ler histórias clichês! Será que não dá pra mudar o disco? Vamos falar da RAIVA de ficar mais de meia hora na fila do Banco do Brasil, vamos falar daquele corte de cabelo R-Í-D-I-C-U-L-O da atriz da novela das nove, vamos reclamar que o I-mac está caríssimo? Que tal perder horas a fio discutindo a opção sexual dos outros? 

Vamos ler Karl Marx, fumar um charuto e nos sentir socialistas? Vamos deixar crescer a barba, xingar o capitalismo e tomar um wisky? Assim, dormiremos embriagados de cultura. Vamos?

A história de Xico, com x, é clichê. 

Vamos, então, esperar que morram (não de raiva, de fome antes do almoço, de tédio, de cansaço de final de expediente ou período da universidade) todos os milhares de brasileiros pés descalços? Assim, quando só restar um ou dois, poderemos declarar extinta a miséria! E surgirão ONG’s para garantir a preservação dessa espécie raríssima.

Brasil, vamos proteger os pobres, antes que eles entrem em extinção?




  

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sujeito: passivo?



O Henfil tinha raiva da morte.
A minha irmã salva cachorros de rua.
Minha mãe levou a poesia de Vinicius para o bairro mais pobre da cidade.

Três orações. Três sujeitos. Singulares.

“Eles não estão preparados para votar”. “Eles não sabem o que é cultura”. “É distribuir pérolas aos porcos!”. Em um mundo em que fortalecer a própria voz é a ordem do dia, um canto de vozes desafina os bons modos. Tortos, definem o que é o culto e o que não é. Oculto, o preconceito preguiçoso que aceita as contradições do lado de lá. Um muro invisível, pré-combinado, que impede a mudança. Impede o conjunto. Define a massa. 

A poesia de Vinicius de Moraes subiu o morro, bateu na porta da escola construída entre barrancos. Chegou cansada, tímida ao ver aqueles tantos olhos das crianças que a esperavam. Mas poesia é poesia! Ela não reparou nas roupas simples, nos atos simples, nas meninas simples. Entrou com tudo, como se estivesse nos palanques bonitos das Universidades ou nas casas de quem não anda de ônibus, não gasta o sapato...   
Minha mãe levou poesia para o bairro mais pobre da cidade. Agora, quem nem desconfiava dos lirismos dessa vida, canta a garota de Ipanema. 

Outro dia, um homem arrastou seu cão enquanto dirigia o carro. Ontem, vi uma senhora dividindo um pão entre suas três crianças e um filhote. Enquanto isso, a cidade grande que movimenta economias nunca para. É um eterno entrar e sair de casas, de trânsitos, de lojas. As pessoas estão sempre correndo: é preciso entrar em forma, afinal. Não se vêem os bueiros com seus ratos, as esquinas com suas mulheres, não se vêem os cães. Mas a minha irmã salva cachorros de rua. Agora, da estrada em que estão também os ocupados no seu próprio correr, ela ganhou mais dois olhos para correr junto. A minha irmã salva a rua dos cachorros? Não. A minha irmã salva os cachorros de rua.

Sorte e Morte. Entre rimas, razão. O Henfil tinha raiva da morte. Da dele, dos meninos que comiam farinha, da solidariedade. Morte é fim e todo fim é uma espécie de sorte. O intervalo é chance. Oportunidade de temer o desfecho e agir, de levar poesias para o bairro mais pobre da cidade, de salvar cachorros de rua...

A poesia levou a minha mãe para o bairro mais pobre da cidade.
O cachorro salvou a rua da minha irmã.
A raiva da morte me dá medo do Henfil.

A singularidade dos sujeitos fez três orações. E eu as rezo, pacificamente ativa.  

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Desumanize-se


Peste negra, AIDS, câncer. Nazismo, holocausto, guerra. Homofobia. Excesso de informação. Os séculos sempre estiveram cheios de males característicos. Chamar isso ou aquilo de “mal do século” é uma prática recorrente. No entanto, atribuir ao tempo, à sorte, ao destino ou ao que quer que seja, as intempéries pelas quais passa o ser humano é, no mínimo, cômodo.

O mal não está no século, na década, no ano. O mal  está em cada um de nós que compõe os dias do calendário. Em cada indivíduo: famoso, ateu, povo, massa.  O mal do século é a falta de visão. E não, não me refiro à condição física de não enxergar. É a visão seletiva, cômoda. É a visão má.

Ponto. Maldade é o mal. Não dos tempos, mas do homem.  Não de todos, mas da regra.

Defendemos a reforma agrária porque queremos ver o “povo”, com todas as suas caras sujas e pés descalços, de volta para o campo.

Sonhamos com o fim da miséria unicamente pelo medo de sermos assaltados na próxima esquina.

Comemoramos o câncer de um político porque não compartilhamos de sua posição ideológica.

Passamos tanto tempo invejando os que se destacam que não temos tempo para nos destacar também.

Somos frios. Somos rudes. Grossos. Contraditoriamente incomunicáveis.

Ironicamente, há os que se ofendem ao serem chamados de “desumanos”. Se a humanidade é isso, o fato de não fazer parte dela não é castigo. É privilégio.

Quem sabe um dia me desumanize e possa conjugar novamente as minhas frases? Abandonarei a cumplicidade da primeira pessoa e substituirei o “nós” por “vocês”.
Melhor que isso é fazer um outro nós, assim, sem males do século. “Vocês” serão a exceção e um “nós” de visão clara e atos concretos será a regra.

Que venha, utópico, o mundo das exceções.